O Bauru sempre vai ter essa noite de sexta na qual derrotou o Real
Giancarlo Giampietro
Independentemente do que aconteça no domingo, Bauru ao menos já vai ter a noite de sexta-feira para a sua história. Não é sempre que você pode enfrentar um Real Madrid, nove vezes campeão da Europa. Mais rara ainda é a chance de comemorar uma vitória para cima deles, como aconteceu no Ginásio do Ibirapuera, com jogo estendido até a última posse de bola e placar de 91 a 90.
Com uma defesa muito firme no final do segundo período e um ataque arrasador na abertura do terceiro, o Real chegou a abrir 17 pontos de vantagem quando haviam corrido precisamente 2min01s da segunda etapa (47 a 32). A partir daí, porém, o time baixou a guarda, conscientemente ou não, e, quando seus atletas se deram conta, a diferença já havia despencado. Ao final do quarto, o marcador apontava 62 a 59. O time espanhol ainda chegou a abrir mais sete na última parcial, mas, àquela altura, a dinâmica do duelo era outra. O Bauru acreditava firmemente que era possível encará-los, e o público presente entrou na pilha, se inflamando.
Estava novamente em prática o ataque que havia arrebentado com a concorrência brasileira e continental há questão de meses. Um ataque bem diferente, diga-se, daquele que alcançou a final do NBB e teve rendimento sôfrego contra o Flamengo. Você pode não aprovar o volume de chutes de longa distância (33 de 65 no geral). Algumas delas foram forçadas, especialmente no primeiro quarto, quando o time estava nervoso com o grande palco, as luzes e os antagonistas. No segundo tempo, porém, não dá para negar que a bola girou no perímetro, passou em mais mãos, e foi aí que começou a chover arremessos de três pontos, com mais intensidade até do que os refrescantes e salvadores pingos do lado de fora, depois de uma semana de calor infernal em São Paulo.
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Entre os atiradores estavam novamente os pivôs, Rafael Hettsheimeir e Jefferson William, combinando para 9-17, com 6-9 para o ex-madrilenho, numa verdadeira aberração estatística, até mesmo para o Golden State Warriors, o Houston Rockets e qualquer outra equipe da NBA ou da Europa que busque cada vez mais o tiro exterior como um caminho “eficiente”. O fator que causa espanto é que seus grandalhões tenham um aproveitamento deste nível e com volume elevado. “Se for pegar as estatísticas, vai ver que fomos superiores em praticamente todos os fundamentos. Só perdemos nas cestas de três, e, sim, o acerto dos pivôs fez a diferença”, afirmou o técnico Pablo Laso — no geral, ambas as equipes converteram 48% de trás da linha, mas os brasileiros converteram seis a mais. Ele só esqueceu de mencionar as assistências (19 a 13, que também comprovam a maior fluidez do segundo tempo). “Alguns dos arremessos estavam até bem defendidos, mas eles fizeram”, completou o armador Sergio Llull, sentado ao seu lado. Sim, esse time do Bauru tem disso: quando estão com confiança, até mesmo alguns chutes que parecem destinados o ar — e não à cesta — caem. Em alguns momentos, Hettsheimeir não parecia nem mesmo ter o controle da bola e já efetua o disparo.
“Isso é o nosso forte. O Bauru montou um time com grandes chutadores e é algo que ajuda muito. Abre a quadra. Tanto que, no último ataque, o Guerrinha montou uma jogada como todos abertos, e o Fischer, nosso menor jogador, ficou praticamente sozinho para fazer a cesta. É algo que ajuda bastante”, afirmou Jefferson.
Há algo de heterodoxo no basquete bauruense que é interessante e que, quando funciona, cria uma bagunça tática, mesmo, e que o técnico Guerrinha registrou em sua coletiva, na sequência dos espanhóis. Quando o time está a pleno favor, as posições se invertem: se os pivôs estão no perímetro, o pequeno e brabo Alex está lá perto da cesta, oprimindo adversários de sua altura, mas que não têm como segurá-lo num jogo de pancada e habilidade de costas para a cesta. Há também a ameaça das infiltrações de Ricardo Fischer e, com a chegada de Leo Meindl, o time ganha outra opção interessante nessas trocas, uma vez que o jovem ala tem presença muito mais física que a de Robert Day.
“Você sabendo usar a bola dos três ela é fantástica. Ela nos colocou na vitória. É a nossa característica, mesmo, de arremesso, mas também usamos o Alex no poste baixo, que foi onde ele definiu o jogo nos minutos finais, sempre com a ameaça do arremesso de fora. A gente pode trocar as funções, isso faz parte do jogador moderno”, afirmou o técnico Guerrinha.
Bem, os chutes de três podem ter pavimentado a reação, mas foi uma bandeja, debaixo do aro, que garantiu o triunfo, não? Saibam que foi uma jogada quase que improvisada. “Nós fizemos um movimento que nem nossos jogadores conseguiam direito, porque não deu tempo de treinar. Mas desenhamos. Já tinha conversado algo com o Ricardo. O Alex falou para não perdemos o que foi passado, que era para cumprir à risca. E foi bem feito, terminando numa bandeja”, disse Guerrinha. Fischer acrescenta: “A gente tinha uma outra jogada. Ele desenhou para acabar em mim a bola, ou, consequentemente, no Alex, e felizmente caiu para mim e consegui sair livre e acertar”.
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Saiu aí a vitória, com uma simples e tranquila (na medida possível) finalização do armador, que teve uma grande atuação. Fischer, porém, era o primeiro a dizer nas entrevistas que, por mais especial que tenha sido a vitória, que tenha uma sensação de façanha, eles não poderiam se empolgar muito sabendo que, no domingo, às 12h, tem mais. E tem, mesmo. Da parte do Real, é algo que até mesmo os bauruenses esperam: eles virão mais preparados, tendo visto agora, de perto, o poderio do chute exterior de seu adversário. Não só isso, mas muitos outros detalhes. O sábado será um dia de muito estudo, para que depois os atletas sejam municiados de muita informação. Então aí vai precisar ver, mesmo, o quão eficiente os arremessos de Bauru poderão ser, com a oposição mais concentrada neles. “No primeiro tempo, eles não conseguiram”, disse o técnico merengue. “Não fomos surpreendidos. Conhecíamos bem esse estilo, e foi acerto deles. Não é que tenhamos jogado contra ninguém. É o campeão das Américas.”
Para segurar Alex, Laso também deve muito provavelmente usar mais o massudo Maciulis. Coisas do tipo, os ajustes por uma taça. Para ficar com ela, o Bauru precisa ganhar novamente, já que não existe empate no basquete e uma derrota por um pontinho também forçaria a prorrogação. O título, dãr, é o que vale mais. De qualquer forma, pelo menos por 40 minutos, os brasileiros se sentiram confiantes e otimistas de que era possível. “Já foi uma noite de sonho. Ganhar do Real Madrid por meio ponto já é isso. Sensacional, mas agora acabou a euforia”, afirmou Fischer.
* * *
Algumas notas sobre os bauruenses:
– Ricardo Fischer fez uma partida excepcional ofensivamente, uma atuação que certamente eleva sua cotação no mercado internacional. Em conversa por telefone na semana passada, o armador já havia dito que, a despeito do final melancólico que teve a seleção, sua primeira experiência para valer com a equipe fez bem para sua cabeça. Voltou para casa com a sensação de que poderia competir com alguns dos melhores do mundo na posição, ainda que ciente de que há muito o que precisa melhorar, especialmente do ponto de vista físico e na defesa. Nesta sexta, foi batido facilmente em arranques de Lllull e Rodríguez, mas a verdade é que os espanhóis costumam ter sucesso contra a maioria de seus marcadores, mesmo. Do outro lado, porém, compensou com um controle de jogo que comprova o quão rapidamente vem amadurecendo. Depois de um início de jogo atabalhoado, voltou do banco de reservas mais sereno e assumiu as rédeas de sua equipe. De 12 turnovers cometidos no primeiro tempo, Bauru conseguiu limitar as besteiras para apenas três no segundo, e muito disso passou pela segurança de jogo de seu armador, que terminou com 12 pontos, 8 assistências e apenas dois desperdícios de posse de bola em 31 minutos, convertendo 4 de 10 arremessos.
– Alex Garcia teve mais uma de suas partidas em que entrega um pouco de tudo ao time. Foram diversas as situações, gente, em que ele aparecia como a última barreira defensiva do time brasileiro, na cobertura do garrafão, pronto para desarmar tanques como Felipe Reyes e Gustavo Ayón. Fazendo falta, ou não, dá para se dizer que levou a melhor na grande maioria desses embates. Isso tem a ver com o seu senso de posicionamento, a força e a capacidade atlética ainda acima da média. Some-se a isso as oito assistências e os sete rebotes, e temos um perfeito “glue guy”, o homem da liga. Mas não podemos nos esquecer dos seus 12 pontos, sendo oito deles em arremessos nos arredores da cesta, com a importância tática já acima relatada. Se for para reclamar de algo, apenas lista-se os três lances livres que desperdiçou em 29 minutos. É impressão minha, ou, aos 35 anos, Alex está jogando o melhor basquete de sua carreira?
– Gui Deodato: podem falar o que for do entrosamento de verões passados que tem com esse grupo, mas o jovem ala foi aquele que entrou na maior roubada. Na quinta-feira, estava em Rio Claro sofrendo para fechar a série contra Pinheiros, pelas quartas do Paulista. Do nada, tinha a missão de perseguir atacantes perigosos como Jaycee Carroll e Sergio Llull. Porém, compenetrado, usando sua envergadura e agilidade lateral, fez um trabalho admirável e foi importante demais na reação de sua ex-nova equipe, se é que isso faz sentido.
– Leo Meindl mostrou no segundo tempo os lampejos que justificam a opinião geral de que fará parte por um tempo da seleção brasileira. Ainda há buracos em seu jogo que precisam ser trabalhados, como a visão de quadra quando driblando em direção à cesta (foram dele quatro dos 15 turnovers do time). Também tem o físico, algo que precisa ser martelado. Mas há outras características que lhe são naturais e difíceis de se ensinar. Como o tino e o arrojo para pontuação. Meindl se comportou como se fosse a coisa mais natural do mundo anotar 15 pontos contra o Real Madrid, em apenas 22 minutos.-
– Jefferson William fez apenas o seu quinto jogo desde que se recuperou de uma ruptura no tendão de Aquiles. Sair dessa, meus amigos, é uma batalha. O fato de ele poder estar em quadra para curtir uma final dessas já é uma vitória para o ala-pivô. Poder ter contribuído para o triunfo, então, nem se fala. Anotou 10 pontos em 27 minutos e, é verdade, pegou apenas três rebotes e teve problemas na defesa contra o americano Trey Thompkins, no quarto período. De todo modo, ao matar 3 de 8 arremessos de longe, se firmou como uma arma a ser respeitada pela defesa do Real, já cumprindo um papel tático muito relevante para sua equipe.
– Rafael Mineiro jogou 14 minutos, anotou apenas 2 pontos, mas tem de ser elogiado. Sua capacidade defensiva é anormal. Acho que escrevi isso durante a Copa América, então corro o risco aqui da repetição: mas você não vai encontrar facilmente por aí um jogador do seu tamanho e com tanta mobilidade e seu senso de posição. O pivô foi bem na marcação de gente como Reyes, Thompkins e Gustavo Ayón, fechando espaços e portas, devido a sua movimentação lateral que é digna de um armador. Só contei uma posse de bola na qual ele foi batido, quando Thompkins conseguiu cortá-lo pela esquerda para fazer a bandeja no segundo tempo. E só. Ele é como se fosse um canivete suíço na defesa, cumprindo tarefas difíceis que nem sempre são percebidas.
– Rafael Hettsheimeir começou a partida claramente pressionado. A bola estava fervendo em suas mãos. Foram diversas as vezes no primeiro tempo em que recebeu passes tranquilos e se atrapalhou na hora de subir na cesta. Quando o jogo estava no pau, nos minutos finais do quarto período, porém, lá estava o pivô batendo palmas em quadra, chamando o jogo. Uma senhora transformação, conduzida pelo volume de jogo externo. O camarada Ricardo Bulgarelli cantou esta, e com razão: deve ter sido sua melhor atuação ofensiva desde aquele embate histórico em Mar del Plata com Luis Scola, rumo à vaga olímpica. Foram 27 pontos em 38 minutos (descansou apenas por 1min48s). Pegou apenas três rebotes, por outro lado, e deve ficar atento a esse fundamento no segundo jogo. Desconfio que, para domingo, o Real possa fazer uso por mais minutos de sua formação “supersize”, procurando atacar a tábua ofensiva.