Por onde anda Scott Machado? Desbravando as quadras da Estônia
Giancarlo Giampietro
Peraí: Estônia?!?!
Sim, a Estônia.
Vamos dar alguns segundinhos para você digerir a informação e, se quiser, checar exatamente no Atlas qual a sua posição geográfica.
(Tic-tac, tic-tac, tic-tac.)
Pronto: o que achou?
Para mim, de primeira assim, posso dizer que qualquer coisa colada à Lituânia é bom negócio se estamos falando de basquete, não? Pois, então, se for assim, Scott Machado está muito bem. Em sua segunda temporada europeia, após breve passagem pela França, o mais gaúcho dos armadores nova-iorquinos foi parar no BC Kalev/Cramo, na capital Tallinn – e isso, a despeito do clima, não significa necessariamente uma fria. Em termos práticos, obviamente parece um tremendo retrocesso se for para comparar com Houston Rockets e Golden State Warriors, os times com os quais teve contrato na NBA. Mas vamos com calma. O Kalev pode não ter tanta tradição de glórias e conquistas e ídolos mil para além das fronteiras estonianas, mas tem agenda cheia e disputa três campeonatos nesta temporada, sendo que um deles é dos mais interessantes da Europa: a Liga VTB.
Para quem não está familiarizado, é uma competição engloba alguns dos melhores clubes dos países da antiga Cortina de Ferro, no Leste Europeu, com proeminência para os russos – a começar pelo CSKA Moscou, que venceu cinco de seis edições e descarta maiores apresentações, ao passo que o Nizhny Novgorod também se colocou entre os 16 melhores da Euroliga deste ano, em sua estreia, e que UNICS Kazan e Khimki Moscou estão nas semifinais da Eurocup, a segunda principal liga do continente. Quer dizer, se fosse apenas um campeonato russo, já seria difícil. Mas entram outros no páreo, numa simples e ótima ideia, e é nesse grupo que se encaixa a agremiação estoniana do brasileiro. Apenas os lituanos decidiram pular fora nesta temporada, desfalcando o campeonato de Zalgiris Kaunas, Lietuvos Rytas e Neptunas Klaipeda.
É um campeonato forte e mais rico que a média europeia, com direito a 28 jogadores que já atuaram na NBA, como Andrei Kirilenko, Victor Khryapa, Nando De Colo, Derrick Brown, James White e Anthony Randolph. Sem contar, claro, caras como Milos Teodosic, Sasha Kaun, Taylor Rochestie (cestinha da Euroliga), Petteri Koponen e Tyrese Rice, nomes evidentemente de elite, mas que nunca deram as caras na liga americana, por uma ou outra razão.
Em meio a tanta gente boa, o que Scott Machado anda aprontando? Em 26 partidas, tem 14,1 pontos, 7,9 assistências (mas com 4,2 turnovers, diga-se), 4,1 rebotes e 1,2 roubo de bola, em 33 minutos. Em termos de ranking geral, ele é o quarto em passes para cesta. Para além dos úmeros básicos, porém, há o que se destrinchar, pensando no que a gente já sabia a respeito do jogo do brasileiro. É o segundo em posses de bola que terminam em assistência, mas o sétimo nas que acabam com desperdício. Isso tem a ver com o fato de o ser 17º da liga em taxa de uso, daqueles que mais se envolvem com o que o time faz no ataque.
Uma deficiência que o atrapalhou bastante em sua tentativa de afirmação na NBA foi básica: nos arremessos. Se o jogo chama bola ao cesto, fica difícil, né? Bem, lá no Leste europeu, não dá para dizer que ele tenha sanado esse problema. No geral, tem convertido apenas 42,1% de suas tentativas de dois pontos e 30% de três. Quando você fatia a quadra, para saber exatamente de onde estão saindo esses chutes, vai perceber que Scott ao menos evita as bolas longas de dois pontos contestadas, uma boa medida (apenas 33 de seus 341 chutes, menos de 10%).
Acontece que, quando ganha o garrafão, buscando situações supostamente de maior probabilidade de acerto, o rendimento tem sido apenas de 38,4% (28/73) diante da cesta e de 47% nos tiros em flutuação dentro da zona pintada (54/115). No perímetro, porém, ele acaba arriscando muito mais em uma posição frontal ao aro (23/78, 29,5%), do que pelas alas, especialmente na zona morta, onde a distância encurta (13/42, 30,9%). Nota-se que o brasileiro fixou bem o padrão de jogo que lhe ensinaram em Houston, buscando arremessos mais eficientes. Resta convertê-los, o que não é mero detalhe.
Agora, não é só fazendo cesta que se influencia um jogo de basquete. Sinto que, mesmo num 1º de abril, isso já pode ser tratado como uma verdade absoluta entre nós, né? Ainda mais para um armador. Nesse ponto, pouco se discute em relação a sua capacidade de comandar uma equipe, devido a sua visão de quadra, altruísmo e disposição positiva em geral. Era o que apresentava em Iona, sua universidade nos Estados Unidos, e foi justamente isso que o levou a bateu à porta da NBA.
(Aliás, aqui um parêntese: pegamos muito no pé do jogador quando insistiu em buscar a liga norte-americana mesmo que poucas boas oportunidades surgissem, causando angústia. Com mais distanciamento, dá para pensar no outro lado: 1) é basicamente o sonho de qualquer jogador; 2) Houston, Oakland ou Salt Lake City, sua última escala, estão muito mais próximas de sua casa, de sua família do que a Tallinn, e dá para perceber que isso tem um baita peso para o jogador, ainda mais depois da trágica morte de seu pai; 3) são poucos os atletas que chegam ao estágio que ele alcançou, de ser bom o suficiente para ser considerado um prospecto para a liga americana, enquanto milhares de universitários não passam nem perto disso. De qualquer forma, mantenho: uma vez fora do Rockets, jogar na Europa seria a melhor via, mesmo.)
E Scott está liderando o Kalev em uma campanha de recuperação nas últimas semanas que pode garantir o time nos mata-matas, algo que seria inédito e uma façanha e tanto. Para se ter uma ideia, na temporada passada, quando os 20 participantes ainda eram separados em dois grupos, o time caiu ainda na primeira fase, com apenas 5 vitórias e 31 derrotas no geral.
O clube estoniano vem numa ascensão, com quatro vitórias seguidas, que coincidem precisamente com a melhor fase de seu armador. Em três dessas vitórias o gaúcho nova-iorquino terminou com double-doubles: 12 pontos e 11 assistências contra os Bisons, da Finlândia, 15 pontos e 12 assistências contra o Nymburk, da República Tcheca, e 13 pontos e 12 assistências contra o Tsmoki, da Bielorrússia, nesta quarta-feira. Só para não deixar passar batido: pode não ter garantido um duplo-duplo contra o Krasny Oktyabr (tradução: Outubro Vermelho, claro!), mas não está nada mal uma linha com 21 pontos e 9 assistências em um triunfo apertado por 82 a 80, no qual jogou todos os 40 minutos.
O fato é que Machado carrega uma grande responsabilidade como principal força criativa do elenco, e aí que se precisa dar um desconto em seu elevado número de turnovers – nessa sequência positiva, foram 3,5, número ainda alto, mas já abaixo de sua média na temporada. Os adversários sabem que precisam pará-lo. Com todo o seu dinamismo em quadra, não dá para dizer que os desperdícios de posse de bola sejam um mal necessário. Sempre é bom evitá-los. Mas eles vêm num pacote geral do qual o Kalev está claramente se beneficiando com 15,2 pontos, 11,0 assistências, 5,5 rebotes e 3,0 roubos de bola, com mais palatáveis 36,8% nos tiros de três pontos e 51,8% nos arremessos de dois. Ainda mais quando registramos que, de 160 minutos de jogo, ele só descansou por pouco mais de 17 no total.
Importante dizer que as quatro vitórias vieram contra times que estão na parte baixa da tabela. De qualquer forma, foi feito o dever de casa. Observando um trecho mais complicado da tabela, entre os dias 5 de janeiro e 1º de fevereiro, no qual enfrentou CSKA, UNICS, Lokomotiv Kuban, Kimkhi e Nizhny, as estatísticas caíram um pouco: 11,8 pontos, 9,6 assistências, 6,0 assistências, 1,2 roubada, além de 3,6 turnovers (com direito a 9 contra o CSKA), com 31,5% de três pontos e alarmantes 37,1% de dois. No geral, todavia, a produção do armador aumentou em 2015, na segunda metade da temporada, e dá para dizer que isso tem a ver com o entrosamento com os companheiros e um entendimento maior sobre os adversários, sem contar a tal da adaptação. Hoje, até dá aula de culinária gratuita:
O legal aqui é que Scott está, ao seu modo, desbravando um território um tanto inóspito redescobrindo um território que andava recebendo poucos brasileiros – do basquete. No futebol, são vários os boleiros por lá, é verdade. Nas quadras, porém, que me lembre, o único que esteve recentemente por estas bandas foi Marcelinho Machado, quando vestiu a camisa do histórico Zalgiris Kaunas – mas isso já leva oito anos. Murilo Becker também deu uma passada pela Bulgária, na mesma época. E só?
(Atualização: reponsável pelo área técnica no escritório da NBA no Brasil, Daniel Soares deu uma contribuição mais que valiosa aqui, demonstrando como a memória do blogueiro anda fraca. É o que dá escrever na correria. Daniel recuperou a bem-sucedida passagem de Rafael “Baby” Araújo pelo Spartak St. Petersburg, além de outros selecionáveis como Guilherme Giovannoni, que também jogou muito bem na Ucrânia, pelo BC Kiev, e JP Batista, que disputou Euroliga pelo Lietuvos Rytas. Outros: Jefferson William e ele próprio na Hungria e o pivô Michel na República Tcheca. No Twitter, o pessoal do Basquete Alviverde citou o pivô Átila dos Santos, o último a vir de lá. “Só”.)
No fim, mesmo que Scott agora a 6600 km de Nova York, é esse o tipo de trilha que o armador deveria seguir, mesmo, para tentar voltar para a casa com um contrato de NBA, algo que ainda trata como obsessão. O próximo passo, porém, seria sair do BC Kalev para um clube europeu maior, usando a campanha de certa forma surpreendente da equipe como chamariz no CV. Mas ainda há uma escalada boa pela frente.
“Sua visão de quadra e habilidade no passe não são o suficiente para compensar a falta de capacidade atlética. Tem os pés lentos, mas uma mente rápida. Dá para notar que ele entende as rotações, consegue lê-las, e passa sempre de modo preciso. Controla o jogo e a bola. Penso que ele é mais um jogador para competições intermediárias. Para a Euroliga, sendo um estrangeiro, você precisa ou infiltrar e passar para fora (o famoso drive and kick, no caso) ou ser um arremessador. No momento, ele não faz nenhuma das duas”, afirmou um scout internacional que assistiu ao brasileiro neste ano.
Outro olheiro, bastante familiarizado com o jogo do brasileiro, segue a mesma linha. “Ele tem limitações para um alto nível na Europa. Provavelmente eu o contrataria como um cara para sair do banco. Acho que ele precisa melhorar a maneira de encarar as coisas e jogar de acordo com suas capacidades. Ele sempre achou que era melhor do que era, e acaba não se concentrando nas coisas que precisa melhorar”, afirmou. “Há ainda há uma chance, mas vai depender de sua mentalidade.”
No fim, Scott precisa do máximo de minutos que puder, refinando seu jogo. A visão de jogo é praticamente inata, mas o restante precisa vir com o tempo e com treino, para aí poder deixar a Estônia – e a estabilidade que aparentemente conseguiu por lá – por algum lugar de maior expressão, visibilidade. Que você encontre no mapa mais fácil.