A NBA precisa banir o dono racista do Clippers
Giancarlo Giampietro
Há tanto sobre o que escrever depois de uma primeira semana daquelas nos playoffs da NBA. Que tal o cartão de visitas de Troy Daniels, das viagens de busão pelo interior do Texas e dos hambúrgueres apressados aos luxos da grande liga, sob os holofotes, salvando a temporada do Houston Rockets? E o Nenê, que fez ninguém menos que Joakim Noah, o agora oficialmente melhor defensor da temporada, de gato e sapato? Para, depois, se perder numa bobagem imperdoável para alguém que é o veterano da turma, a referência num time que tenta curtir seu primeiro momento de alegria desde os tempos em que Gilbert Arenas ainda não havia cruzado, mancando, a fronteira da insanidade? Tem muito mais, para todos os gostos: a inventividade de Rick Carlisle, os renascidos Beno Udrih e James Jones, Pero Antic x David West, Toronto em chamas, LaMarcus etc.
Mas, neste sábado, após o TMZ — vejam só, o TMZ!!! — divulgar um áudio extremamente desagradável de Donald Sterling, o proprietário do Los Angeles Clippers, no qual ele pede singelamente a sua namorada para que ela pare de se deixar fotografar com pessoas negras e que, por favor, não as leve para o Staples Center para assistir aos jogos de seu time, e que era para se evitar até mesmo esse zé-ninguém que atende por Magic Johnson, fica impossível falar sobre basquete. Ficou para o segundo, terceiro ou quarto plano.
Justo o basquete.
Em nenhum momento, em nenhuma instância social, qualquer tipo de manifestação racista pode ser aceita, tolerada. Mas no esporte em geral, e especialmente na NBA, ou na modalidade do bola ao cesto em específico, isso se torna ainda mais deplorável. Repugnante. Nojento. E que o dicionário nos dê mais e mais termos para abordar o caso.
Aqui do meu canto, segundo minha curta experiência, o basquete sempre foi uma realidade à parte, passando de forma alheia a muitas das desigualdades que tomam conta de nossa vida, não importando o estágio da globalização, ou da suposta racionalidade que deveríamos ter atingido. Escrevo aqui como um paulistano declaradamente branco de classe média – cuja família já flutuou de média-pra-alta, média-pra-baixa, dependendo do plano ou índice econômico da vez. Então que adotemos, mesmo, a… Hã… “média”.
De qualquer forma, isso significou estudar sempre em colégio particular, com convênio médico em dia, frequentando shoppings, matinês a cada fim de semana, sem muita dificuldade – ao, menos, claro, segundo minha percepção, ignorando sacrifícios que o pai já fazia. No meu círculo de amigos, colegas, no que dependia, ou fosse depender dessa rotina, havia ou haveria apenas brancos. É um fato. No colégio, contava-se nos dedos o número de negros inscritos. Em todas as turmas.
Foi apenas com o basquete que meu convívio se expandiu. Praticamente todos os amigos negros que tenho fiz nas quadras, especialmente aquela imaginária diante de uma tabela improvisada na rua Abagiba (Vila das Mercês), na qual já fraturei a mão ao tomar uma cama de gato e cair destrambelhado no meio-fio. Foi gente que saiu da quadra, da rua para casa, entrando portaria adentro, por mais que alguns olhares no prédio estranhassem. Se eu percebia isso, imagine eles? Mas os outros que se lascassem, o ‘estrago’ já havia ocorrido.
De modo que, sim, o jogo se tornou uma espécie de templo para mim. Não deliberadamente como forma de justiça social, mas simplesmente por ser um universo em que dinheiro, cor de pele, nem nada externo importava. A gente queria saber apenas de bater bola, ficando a tarde inteira olhando para cima, para a cesta. Não havia razão para perder tempo com esse tipo de excrescência intelectual.
Com o passar dos anos, meu grau de atividade boleira diminuiu de modo considerável, mas a paixão pela coisa ficou. Dentro desse contexto, os comentários de Sterling ficam ainda mais ofensivos. Ninguém tem o direito de mexer com algo sagrado assim. Sua fala não fere apenas o bom senso, mas, particularmente, uma porção de memórias.
Agora, obviamente a ofensa é bem mais pesada para tantos outros. Peguem por exemplo um filme como “12 Anos de Escravidão” e o acalorado debate que ele causa no circuito norte-americano. Obviamente há profundas feridas sociais ainda abertas por lá, e nem poderia ser diferente. Quando o tema envolve a NBA, uma superpotência econômica impulsionada especialmente por mão-de-obra negra, falar em escândalo é pouco. E chegou a hora, ainda que bem tarde, de se dar um basta nisso.
Os jornalistas mais veteranos na cobertura do campeonato se apressaram em dizer que de modo algum a gravação divulgada pelo site de fofocas mais odiado da América os surpreende. Que já ouviram coisa muito pior saindo da boca mal-lavada do sujeito. Para eles, pouco importa que Sterling se defenda, levantando suspeitas sobre a autenticidade do conteúdo divulgado. Seu histórico, por si só, já seria o suficiente para uma revolta. Como Phil Jackson já questionou: quantos “incidentes” a mais causados por este imbecil seriam necessários para que uma providência fosse tomada? Acontece que, numa conveniente e institucional hipocrisia, a direção da liga conviveu com isso por anos e anos, fazendo vista grossa.
Devido ao ocaso tecnológico – em que o vicioso ciclo de notícias de 24 horas por dia, sete dias por semana enfim se mostrou últil -, dessa vez as barbaridades do velhinho “pegaram”, viraram manchete por todas as partes. A opinião pública se deu conta da gravidade e do descompasso da situação de se ter um proprietário de um clube de basquete racista. Não há mais como fugir, evitar o assunto. Os cartolas que se virem diplomaticamente.
Não é algo fácil de se resolver, mas eles precisam dar uma resposta adequada. Não dá mais, espero, para enrolar, enrolar, enrolar e torcer para que o suspense, o drama dos playoffs seja o suficiente para encobrir a sujeira. Ou dá? Lembrem-se que não existe na liga um poder centralizado, ainda mais agora com a aposentadoria de David Stern. Mesmo com o velho comissário, porém, não haveria algo muito claro para se fazer: tanto ele como Adam Silver são funcionários dos 30 associados, personagens que controlam as franquias. São relações complicadas, com distintas facções ideológicas, numa ciranda de gente muito poderosa, de que não brinca em serviço. A ponto de um desbocado como Mark Cuban, que tanto torpedeou a administração de Stern, se esquivar em público. Disse que era algo “óbvio”, dispensava repercussão e, ao mesmo tempo, seria resolvido internamente.
Cuban e outros podem fazer rodeios, mas não tem mais volta. Como conciliar agora Sterling numa mesma reunião com Michael Jordan, dono do Charlotte Bobcats? E o que dizer de Doc Rivers? Como o vitorioso treinador pode aceitar receber ordens – e cheques – de uma figura asquerosa dessas? Para não falar de Chris Paul, a face da franquia em quadra e presidente do sindicato dos atletas, ou Blake Griffin, cujas acrobacias valorizaram, e muito, o patrimônio do bufão. Aliás, são quantos os brancos no elenco do ex-primo pobre de Los Angeles? JJ Redick, Hedo Turkoglu e mais ninguém.
Fulos da vida, sem chão, Redick entre eles, os atletas do Clippers se reuniram neste sábado e ventilaram a possibilidade de fazer um boicote. Abrir mão de disputar o quarto jogo da série contra o Warriors – e quão legal seria se contassem com o apoio dos arquirrivais odiados do outro lado? Mas pensaram, repensaram e afirmam que vão para a quadra. É algo complexo, mesmo. Por um lado, seria uma bomba para a liga resolver, com sua credibilidade e muitos milhões de dólares em jogo. Por outro, esse grupo de atletas já batalhou por mais de 80 partidas na temporada. É o trabalho, o sonho deles. Abririam mão disso, ou simplesmente estão acima de um verme desses? O título seria deles ou de Sterling? Que joguem e ataquem essa situação, amparados legalmente e pela comunidade da NBA, mas depois. No caso de conquista, é de se imaginar que o proprietário só poderia comemorar num camarote reservado, no ostracismo, acompanhado de alguma gentalha de KKK, distante do vestiário e dos verdadeiros protagonistas.
No ostracismo, sim: a atitude pode ter efeito inócuo, já que a franquia continuaria embolsando a grana da bilheteria e afins, mas o empresário, primeiramente, tem de ser banido do Staples Center e outras arenas. Seria uma vergonha transmitir jogos em que sua figura pudesse aparecer para as câmeras da TV, a poucos metros de Rivers ou Griffin.
Obviamente que Sterling será multado também. É o que o escritório da liga em Nova York mais sabe fazer. Relembrem que Micky Arison, dono do Miami Heat, foi punido em US$ 500 mil ao criticar alguns de seus pares durante o lo(u)caute, em 2010. E essa multa teve muito mais a ver com o ferimento de práticas comerciais, estratégicas. Era um momento de intensa barganha por parte dos dirigentes, e Arison foi penalizado como reprimenda à suta suposta tentativa de sabotar negociatas que terminaram tão favoráveis aos magnatas.
A questão em torno do mentecapto que dirige o Clippers, porém, é muito maior. É, na verdade, imensurável. Não há dinheiro que o bilionário possa desembolsar que valha sua ignorância. Como bem disse Kenny Smith, ex-armador do Rockets e comentarista da TNT, é uma vergonha que Sterling seja rico apenas quando o assunto sejam dólares. Disso ele entende, e talvez tenha que se preparar espiritualmente para abrir mão de seu brinquedinho em troca de mais algumas centenas de milhões a mais. Uma vez terminada a temporada, o núcleo forte de gestão da liga, antes presidido por Peter Holt, do Spurs, precisa encontrar algum meio de forçar a venda da franquia.
Candidatos não vão faltar. Bill Simmons, uma das figuras mais influentes da ESPN hoje e proprietário de uma caderneta de ingressos da franquia californiana, escreveu pouco antes de os mata-matas começarem sobre como a liga vive um momento de Eldorado também financeiro. O Milwaukee Bucks, santamãe, custou mais de US$ 500 milhões. Serão diversos os Tios Patinhas, então, esperando na fila, pela chance de desembolsar até mesmo mais de US$ 1 bilhão para adquirir um clube em ascensão como o Clippers, com dois superastros na folha de pagamento, ainda mais numa cidade como Los Angeles.
É algo legalmente possível? Forçar a saída de Sterling? Muito provavelmente não, mas, com pressão de todos os lados, incluindo dos outros donos de clube, talvez a situação fique de fato insustentável. A não ser, claro, que boa parte desses gestores esteja de acordo com o discurso racista desse camarada. Se nenhuma decisão drástica, radical for tomada, teremos a resposta. E aí os atletas que terão de tomar alguma providência, como já prometem fazer, ainda que o próprio Chris Paul, imerso nos playoffs, tenha se calado por ora. DeAndre Jordan, por outro lado, foi brilhante ao postar em sua conta de Instagram simplesmente um quadro negro. Para ele, não havia muito o que dizer.
LeBron James, porém, se pronunciou, e foi como um legítimo rei. “Não há espaço para Donald Sterling na NBA”, afirmou, entre outras ponderações. “Acredito em Adam. Acredito na NBA. Se esses comentários forem verdadeiros, eles têm de fazer algo, e fazer rapidamente, antes que isso saia de controle.”
E ponto.
Não há mais espaço para gente desta laia em lugar nenhum, muito menos no nosso basquete – NBB, Euroliga, ou Parque do Ibirapuera. Nem aqui no VinteUm. Qualquer sujeito que possa pensar ou dizer algo semelhante ao que falou o dono do Clippers só pode ser considerado persona non grata neste blog. Não são bem-vindos definitivamente.