Real conquista o quinto troféu seguido. Por mais que o Bauru tenha tentado
Giancarlo Giampietro
É um tópico um tanto traumático para o basquete brasileiro. O arremesso de três. Oscar Schmidt, que estava como torcedor na primeira partida, matava as suas. Marcel foi outro. Guerrinha também costumava guardar as suas, ainda que com um volume menor quando acompanhado de dupla tão estrelada. Esses caras conseguiram um título histórico em 1987, reeeeeeeeeeealmente histórico. Mas não formaram a geração brasileira mais vitoriosa que já existiu, algo que cabe às lendas dos anos 60. Durante sua história, há uma partida contra a Espanha aqui, outra com a Austrália ali que entram no campo do “se”. Caso tivessem passado por essas e outras, poderiam ter chegado à disputa por medalhas olímpicas e mundiais, e quem sabe…
Mas esse “se” em particular não entra em jogo. O esporte pode ser inclemente e rígido ao extremo, com base no resultado. O próprio Real Madrid que veio a São Paulo para ganhar o quinto troféu seguido, com uma vitória por 91 a 79, é prova disso. A versão de 2013-14 da equipe foi um espetáculo. Praticava um basquete avassalador, mas não ganhou a Euroliga, não ganhou nada do que precisava. Tratando-se de Real, foi um fracasso. Mas, voltando, aqui não estamos falando apenas sobre o clube espanhol, mas, sim, sobre a final da Copa Intercontinental deste domingo e também sobre o time que derrotou, o Bauru, que traz o chute de três pontos à tona de uma forma com que muitos jamais poderiam nem mesmo sonhar. Antes de falar sobre o jogo em si, me permitam retomar o raciocínio cronológico.
Marcel já havia parado há tempos. Oscar ainda se arrastava pela quadra para encestar sem parar, vivenciando e atravessando uma troca de gerações. Enquanto Rogério Klafke e outros alas mais velhos já eram pronta e rapidamente relegados ao segundo escalão, Marcelinho Machado emergia para ser demonizado por seguir essa tradição do chuta-chuta, com a seleção tendo ainda menos sucesso em quadra. Mesmo que o ala carioca fosse um paradoxo ambulante. Ele claramente tinha os fundamentos e a visão de jogo para equilibrar as coisas, algo que apresentou na Copa América de 2005, por exemplo, e em muitos outros jogos. A praxe, porém, era que se perdesse a sanha do tiro exterior. Leandrinho também foi outro que, surgindo à esteira, nunca aliviou. O curioso é que esses dois chutadores, no plano de clubes e separadamente, tiveram belas carreiras e, em geral, cada um na sua, contra diferentes graus de exigência defensiva, foram bem-sucedidos. Não obstante, o arremesso do perímetro virou o grande vilão, o grande símbolo da derrocada brasileira.
Quando surge um Bauru, arremessando quase sempre mais do perímetro externo do que do interno, a recepção não poderia ser bombástica, com a licença para o trocadilho. À distância, fico imaginando os scouts e analistas mais arrojados da NBA conferindo as tabelas estatísticas produzidas pelo time do interior paulista.
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Vocês sabem que, hoje, há uma forte corrente na liga americana, baseada cegamente, ou não, em números que prega o chute de longa distância como um dos caminhos a ser seguido. Eles vão te apresentar uma série de dados para dizer que esta bola precisa ser parte integral de qualquer sistema ofensivo que pense em ficar no lado azul da eficiência, e o Golden State Warriors desponta como um queridinho e como forte argumento dessa linha. Na final do Oeste, eles haviam batido outro dos times ‘nerds’, o Houston Rockets. Na decisão, o Cleveland Cavaliers também não poderia ser considerado uma equipe tímida nesse sentido.
Esse evangelho estatístico não prega tão somente a bola de três como salvação. Porque isso não existe, mesmo. O que existem são arremessos bem selecionados e equilibrados. Com o os lances livres, ué, que, na frieza de seus números, aparecem como fator tão relevante quanto. São, oras, os arremessos com maior índice de conversão. E não só isso: o sucesso também tem a ver com a sua destreza na hora de evitar essas mesmas bolas em sua defesa, no seu poderio reboteiro e mais. Mesmo para os fãs dos números o jogo não é unidimensional.
Aí aparece esse clube brasileiro chutando sem parar de fora, assustando a concorrência. Como aconteceu na primeira partida em São Paulo, na qual seus atletas tentaram 33 bolas de longa distância contra 32 de dois pontos, ao passo que acabaram batendo apenas 14 lances livres. Ainda assim, obtiveram uma vitória especial, para não se esquecer jamais.
De qualquer forma, o desafio estava na posto em quadra. De um lado, Andrés Nocioni admitia que não estava nada acostumado a enfrentar um time que abrisse seus dois grandalhões no perímetro, confiando no bombardeio. Do outro lado, o Bauru sabia que, para a segunda partida da final, esse tipo de jogada seria contestado e que deveriam encontrar outras formas de pontuar. Pois o Real conseguiu contestar, de alguma forma, no perímetro. E os bauruenses também olharam para outros setores para tentar contragolpear. Ainda assim, a matemática foi mais favorável aos merengues.
Vamos esmiuçá-la: neste domingo, Bauru ainda acertou 36% de seus chutes de fora. Não é uma marca de todo ruim, mas vale como algo bem caído perto dos 49% do Jogo 1. Aproveitamento à parte, acho que o que Real mais deve ter comemorado taticamente foi o fato de terem conseguido reduzir também o ímpeto de seu adversário, pelo menos no ponto em que foi mais ferido. De 9-17, Jefferson William e Rafael Hettsheimeir foram limitados a 1/6 no Jogo 2. Arremessaram 11 bolas a menos de trás da linha. Quer dizer, parece que a estratégia de Pablo Laso deu certo, que foi a de fazer as dobras no pick-and-pop e deixar sempre um homem grudado no pivô. Nem que, para isso, tivessem de ver Ricardo Fischer marcar 26 pontos, com 7-12 de quadra, além das seis assistências para apenas um turnover.
O armador brasileiro, que sai de cabeça erguida desse confronto e com a cotação internacional certamente elevada, teve espaços para atacar o garrafão, ao se ver diante de Gustavo Ayón e outros pivôs madrilenhos. Atacou o aro com sagacidade e fez o máximo que podia. O problema é que o Real estava disposto e contente em viver com isso, desde que a artilharia ao seu redor fosse controlada. E foi o que aconteceu.
Mas isso não quer dizer que Bauru aceitou essa armadilha e chutou sem parar de fora, a despeito da contestação. No geral, foram apenas cinco arremessos a menos nessa distância do que na sexta-feira. Mas alguns deles vieram no desespero dos minutos finais, quando precisavam diminuir a diferença dos campeões europeus para um ponto, num placar esdrúxulo que renderia a prorrogação. Fischer, aliás, foi o que mais tentou, com 5-8. Por outro lado, a equipe campeã americana tentou o dobro de lances livres dessa vez (28 contra 14). Um desconto precisa ser dado aqui devido ao excesso de faltas apitado contra os madrilenhos, que os deixou malucos. Não estou aqui acusando roubo ou falhas da arbitragem, mas apenas registrando que alguns dos lances livres batidos pelos bauruenses não foram resultado de ataques à cesta. Mas eles aconteceram. Fischer, mesmo, bateu oito lances livres e converteu sete. Hettsheimeir foi 12 vezes para a linha e acertou dez.
Se formos pegar, na real, os números dos três disparos básicos numa folha estatística, vamos ver que Bauru e Real tiveram volume ofensivo bem próximo: dois pontos (20-36 tentativas do Real x 14-29 Bauru), três pontos (10-26 x 10-29) e lances livres (21-29 x 21-28). , com 13 turnovers para os espanhóis e 11 para os brasileiros.
O que aconteceu foi que, na hora de buscar o jogo interno, o time de Guerrinha falhou. Do alto de seu 1,90m de estatura, Alex Garcia foi afastado da zona pintada quando viu Jonas Maciulis e até mesmo Andrés Nocioni dedicados à sua marcação. Seu jogo de costas para a cesta não funcionaria desta forma. Por isso, passou a atacar de frente, e matou 5-10 para somar 14 pontos. Taticamente, porém, seu papel foi reduzido. As investidas, então, foram mais tradicionais, com Hettsheimeir, e o pivô, que tem proposta do Estudiantes, da Espanha, falhou muito nesse fundamento. Em suas nove tentativas para dois pontos, converteu apenas duas, apresentando muita dificuldade em conversões próximas à cesta. Algumas notas a respeito: por favor, não vela o argumento canalha de que talvez ele esteja praticando tanto o chute de fora que tenha esquecido como fazer uma bandeja — o chute de média distância sempre foi sua principal arma; Rafael nunca teve o par de mãos ou o jogo de pés mais habilidosas em quadra… Para esse tipo de situação, lhe falta agilidade e munheca, precisando, por isso, de muito tempo e espaço para armar o gancho e fazê-lo funcionar; quando contestado, tende a perder o controle da bola ou subir desequilibrado e a falhar como aconteceu neste domingo, pois, além do mais, estava enfrentando uma linha de frente respeito. Enfim: o pivô brasileiro tem hoje uma grande arma, valiosa em seu repertório, mas apresenta buracos em seu jogo que impõem um limite ao seu potencial.
Outro buraco é o rebote. Em dois jogos e quase 72 minutos, ele apanhou apenas nove. Sozinho e contando apenas a tábua ofensiva, Ayón conseguiu oito no segundo confronto (no geral, foram 15 neste domingo e 17 em 56 minutos para ele). E isso não se explica por sua predileção ao chute de três, gente. Ele pode estar afastado da tabela no ataque, mas não é o que acontece na defesa. De todo modo, a esmagadora vantagem de 46 rebotes a 25 imposta pelo Real no jogo do título não cai apenas em seus ombros. Jefferson William (5 rebotes em 58 minutos) ainda está com a mobilidade muito reduzida). Rafael Mineiro (4 em 28) também pode ser mais atento no fundamento. Para Guerrinha, registre-se, a surra nos rebotes aconteceu devido à necessidade de o Bauru correr atrás do resultado desde o início. Seguindo o seu raciocínio, tiveram de atacar mais a bola e assumir riscos. Os riscos geraram oportunidades para o rival. O Real soube aproveitá-los e, mesmo quando não convertia na primeira tentativa, apanhava o rebote ofensivo (foram 21!) e davam sequência ao ataque, com 15 pontos de segunda chance, contra apenas dois do adversário. “Eram situações de desequilíbrio, e eles tinham reposta para tudo que tentávamos. Tínhamos de socorrer em uma outra situação, e eles se aproveitaram muitas vezes. Se for ver, cada jogador de destacou em um determinado momento”, afirmou o treinador brasileiro.
O curioso é que, ainda assim, o jogo foi parelho por muito tempo. A quatro minutos do terceiro período, a vantagem espanhola era de apenas 52 a 51. Depois, ficariam empatados em 53 a 53, por mais que Jaycee Carroll, com mais ritmo, acertasse (22 pontos em 31 minutos 7-14). Muito fora de uma zona de conforto, os madridistas juravam que o trio de arbitragem trabalhava contra, chiando uma barbaridade, a ponto de Sergio Rodríguez ser excluído e de Laso ficar em quadra apenas por vista grossa, de tanto que gesticulava a cada marcação que julgava equivocada. O Real não imaginava passar pelo que passou, gente — e isso não tinha a ver com soberba, mas com uma crença de que levariam um título para o qual se mostraram realmente motivados. Com seis minutos para o fim da partida, o placar ainda apontava 71 x 66.
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Nos minutos finais, porém, Sergio Lllull (21 pontos, 6 assistências, 5 rebotes, 7-17 nos arremessos e o prêmio de MVP) converteu algumas grandes jogadas, acompanhado pelo reforço Trey Thompkins (17 pontos, 7-8, em 21 minutos) e assessorado pelo adolescente Luka Doncic, que sobrou com um rojão na mão após a despedida de Rodríguez e segurou a bronca sem dar a mínima, como se já fosse campeão do mundo e duas vezes medalhista de prata que nem Felipe Reyes. Aos 16 anos? Impressionante. Quando os chutadores erravam, lá estava Ayón espanando geral no garrafão para dominar os rebotes. Como na sequência que aconteceu basicamente entre 4 e 3 minutos para o fim, quando apanhou três em sequência para, basicamente, garantir o título — era quando a vantagem já estava na casa de dois dígitos, e ao Real valia mais gastar o cronômetro do que uma cesta rápida.
Para os jogadores de Bauru, faltou gás no final. A rotação merengue, mesmo sem Rudy Fernández, Jeffery Taylor e, depois, Rodríguez, teria feito a diferença. Guerrinha disse que não conseguia tirar Fischer por muito tempo de quadra (fora 35min38s para o armador titular). No final, correndo atrás do placar,e estavam todos desgastados.
Outro ponto interessante de contraponto foi a opinião de cada um dos técnicos sobre o que teria feito a diferença, e uma, na real, não exclui a outra. Para Guerrinha, o que complicou tudo foi a sequência de 12-0 para os europeus em coisa de cinco minutos, que teriam ditado o restante do jogo. Para Laso, porém, o que pesou, mesmo, foram os minutos finais, para os quais estava preparado. “Entendia que eram 80 minutos de jogo. Tivemos nossos altos e baixos durante esse período, mas, para o quarto decisivo, estávamos bem, crescendo”, afirmou. O brasileiro, porém, se dá ao direito de questionar, citando a qualidade do elenco oponente: “Fico pensando às vezes como seria o Real Madrid com a nossa estrutura, se teriam feito um jogo parelho”, afirmou Guerrinha, na coletiva. “São perguntas que temos de fazer.”
Mas, bem, este é outro “se” que não entra em jogo. Fato é que, como disse Fischer, os 12 pontos finais não contam a história do jogo. Caso Hettsheimeir tivesse mais felicidade em suas incursões debaixo da cesta, caso Llull errasse um outro arremesso pressionado, as coisas poderiam ter sido diferentes. Quiçá. Pegando emprestada uma expressão típica dos espanhóis: só não me parece que, nessa vitória merengue e derrota bauruense, seja justo falar apenas sobre as bolas de três pontos.