Gerald Wallace, os resmungos e a fuga da realidade
Giancarlo Giampietro
Pode sorrir, Pau Gasol. Que o troféu de Maior Chorão da Temporada 2013-2014 da NBA não é seu.
A honraria vai para Boston dessa vez. Obviamente ainda há muito jogo pela frente até chegarmos a abril, mas dificilmente alguém vai conseguir bater o Gerald Wallace nessa disputa.
O jogador que um dia já foi conhecido como “Crash”, por sua capacidade atlética incrível, muita energia e a ferocidade em quadra, brigando por rebotes, distribuindo tocos, aterrorizando os adversários, hoje é um pesadelo apenas para o departamento de relações públicas da franquia mais vitoriosa da liga norte-americana.
Wallace basicamente virou o melhor amigo dos setoristas da Beantown. Os jornalistas que seguem o Celtics sabem: se está faltando assunto, basta abordá-lo no vestiário, na zona mista, em qualquer lugar. Eles só precisam estar certos de que há espaço suficiente na memória do celular para gravar a conversa, ou que a Bic azul clássica está com carga suficiente para gastar o bloquinho. É aquela coisa: “Senta, que lá vem história”.
Quando escrevemos aqui sobre o quão egocêntrica ou ególatra a rapaziada da NBA pode chegar não é por pouca coisa. Nos vestiários, no dia a dia de viagens e muitos jogos, esse é um dos principais problemas que gerentes gerais e treinadores precisam controlar. Quando o Celtics perde tanto como foi em sua recente viagem pela Costa Oeste, fica ainda mais difícil.
A liga, em geral, reúne a elite da modalidade. Para o sujeito chegar lá, precisará ter superado muitos obstáculos desde pequeno, não importando o talento natural. Muitos desses caras foram tratados como reis dos 15 aos 19 anos, vindos das mais diversas regiões dos Estados Unidos, cada um senhor de seu universo (“Sr. Basquete de Iowa” etc.). A bajulação só aumenta a partir do momento em que viram profissionais. Se você não se cuidar, a cabeça vai longe, bem longe, a ponto de se perder completamente a conexão com o que se passa ao seu redor.
No momento, é nesse estado que está Wallace, que não para de resmungar, de modo descontrolado, sobre tudo, absolutamente tudo o que acontece com o Celtics nesta temporada.
Anotando:
– “É mais , se sentir desrespeitado. O que aconteceu? Ninguém se prontificou a dizer, avisar que você seria trocado. Foi do nada: bam! Você vai para um time que está se dilacerando, pensando em reconstruir. É um lugar difícil para se estar depois de 13 ou 14 anos na liga. Fiquei chateado com o modo como o Brooklyn fez. Sei que faz parte, mas é duro.”
– “Tenho de começar de novo, resgatar toda a minha reputação novamente.”
– “Você fica sentado no banco, jogando apenas 17 ou 18 minutos por partida, assistindo, sabe que ainda pode jogar, e vê caras entrando na sua frente que não se esforçam em quadra, não respeitam o jogo e não pensam primeiro na equipe. Isso meio que te frustra, te deixa puto. Mas tem de lidar com isso.”
– “Não estou acostumado a ficar no banco no início dos jogos e nos momentos decisivos.”
– “Esta temporada é um tapa na cara.”
– “Somos o time que é só conversa. Falamos sobre como temos de melhorar. É fácil falar e fazer no treino. Mas os treinos não têm nada a ver com nada em te fazer melhorar. Na hora em que acendem a luz, quando o jogo realmente conta, na hora de fazer o time melhor, não fazemos.”
– “O Denver estava fazendo tudo certo. Do jeito que eles jogaram, do modo como nós jogamos como time, as coisas que fazemos, não merecemos ganhar as faltas que eles ganharam.”
– “Chega de fazer reunião. Chega de papo. Chega disso tudo. Chega de discutir, fazer barulho, reclamar, gemer, de tudo isso.”
– “Acho que um time estava pronto para jogar, e o outro estava preparado para aproveitar o Natal.”
Mas, antes de avançarmos com seu chororô, vale uma digressão.
Uma digressão daquelas, já aviso.
Quem aí está interessado em conhecer um pouco da biografia do ala?
Wallace não se enquadra necessariamente nesse perfil de, vá lá, estrelinha. Não foi daqueles que a vida toda só ouviu elogios e caminhou sobre pétalas e tapete vermelho. Nascido na minúscula e inconfundível Sylacauga, nos confins do Alabama – é supostamente o segredo mais bem cuidado do estado, vejam só! –, ele cresceu jogando numa região que valoriza muito mais o golfe ou o automobilismo (estamos falando do condado de Talladega, cenário perfeito para Will Ferrell tirar um sarro da Nascar americana). No geral, o Alabama também é muito mais conhecido por sua produção de grandes jogadores e times de futebol americano.
Não que o estado, apenas o 23º mais populoso do país, com 4,8 milhões de habitantes segundo a estimativa mais recente do ano pasado, não tenha revelado basqueteiros proeminentes. Quem não se lembra dos dias em que Charles Barkley brincava que se candidataria até, mesmo, a governador por lá? Bem, ao Chuckster fazem companhia Robert “Sete anéis” “Big Shot Bob” Horry, o monolítico Artis Gilmore, os irmãos Chuck e Wesley Person, Jeff “Não sou, nem nunca fui irmão do Karl” Malone e Ben Wallace, aquele fenômeno defensivo da década passada. Nada mal.
Por sua carreira duradoura e produtiva na NBA, Wallace ganhou o direito de se incluir na lista acima, entre os principais expoentes regionais. Mas não se enganem: é em futebol americano e corridas que seus conterrâneos estão antenados. De modo que a badalação em torno do ala nunca foi daquelas, mesmo que ele, em seu último ano de High School, tenha ganhado o prêmio de Jogador do Ano Naismith, entrando numa relação que conta com gente como Kobe Bryant, LeBron James, Dwight Howard, Chris Webber, Jason Kidd (mas também Damon Bailey, Dajuan Wagner, Shabazz Muhammad, Donnell Harvey, entre outros que não vingaram, por diversos motivos; isto é, depende da fornada).
Fiel, talvez demais, a sua terra natal, decidiu jogar na universidade de Alabama, mesmo numa época em que os colegiais poderiam pular diretamente para a liga principal. Os Crimson Tide também foram muito mais celebrados por seus feitos no futebol americano, sendo um dos dez times mais vitoriosos da história na NCAA nessa modalidade, do que pelo basquete, no qual eles não se cansam de apanhar de Kentucky na SEC (Conferência Sudeste). Da NBA de hoje, apenas outros dois jogadores passaram por lá: Mo Williams, que se reinventa como sexto homem no Blazers, e o esforçado, mas limitado Alonzo Gee, ala do Cavs.
Com média de apenas 9,8 pontos, 6 rebotes e pouco mais de um toco e um roubo de bola por partida, mostrou basicamente o potencial que tinha pela frente, mas sem deixar scouts e gerentes gerais malucos. Ainda assim, aos 19 anos, se inscreveu no Draft de 2001, aquele que ficou marcado pelo amontoado de pivôs adolescentes recém-saídos do high school, mas também contou com o influxo de muitos estrangeiros: Pau Gasol em terceiro, Vladimir “Mais Um Futuro Nowitzki” Radmanovic em 12º, Raúl López em 24º e o desconhecidoTony Parker em 28º. No meio de tantas novidades, o ala foi escolhido na 25ª colocação, pelo Sacramento Kings. (Para constar, Gilbert Arenas foi a 30ª escolha, o que na época queria dizer segunda rodada).
Na capital californiana – sim, Sacramento –, Wallace entrou em um elenco fortíssimo. O Kings vivia seu auge, brigando pelo topo da Conferência Oeste com o Lakers de Shaq, Kobe & Phil. Era um timaço, de jogo vistoso, dirigido por Rick Adelman, com Webber como o craque, mas muita gente talentosa, inclusive, nas alas. Turkoglu era reserva de Peja. Christie também estava em alta. Diante desses caras, não havia espaço para um novato ainda muito cru tecnicamente. Foi escalado, então, em apenas 54 jogos, com média inferior a dez minutos. Foi o décimo atleta mais usado pelo hoje treinador do Wolves.
O problema é que passou mais um ano, e outro, e… O cara seguia mais tempo sentado no banco do que atacando o aro. Em 2004, então, para o bem ou para o mal, ele mudaria de vida. Ele foi selecionado para o primeiro time do Charlotte Bobcats, no chamado Draft de expansão, no qual as outras franquias têm o direito a proteger até oito jogadores de seu elenco. O restante? Fica ao alcance de quem está chegando. E Wallace caiu nesse balaio. Daquela lista original, apenas um atleta está na liga ainda hoje: Zaza Pachulia, o pivô cabeçudo e lesionado do Milwaukee Bucks.
Para alguém que havia jogado tão pouco, porém, o que poderia haver de mal numa situação dessas? Ok, o Kings jogava pelo título. Em Charlotte, era sabido que o projeto demoraria a chegar a um nível de respeitabilidade (estamos esperando até agora, aliás). Não haveria restrição alguma para Wallace, só 22, arregaçar as mangas e ir ao trabalho. De espectador passou a terceiro que mais jogou pelo Bobcats. Teve a chance de se apresentar como um jogador dinâmico, daqueles que estufa a linha estatística, com detalhe especial para seus números de rebotes, roubadas e tocos. Em 2005-06, por exemplo, antes de se lesionar, tinha média de dois por jogo em cada um desses quesitos, algo que só dois jogadores na história conseguiram reproduzir num campeonato: David Robinson e Hakeem Olajuwon.
Com carta branca e liberdade, evoluindo temporada após temporada, a despeito de uma constante troca de companheiros, fez seu nome, com agilidade, impulsão, explosão e a fome pela bola, sofrendo uma ou outra concussão no caminho. Até que, em 2009-10, agora com Larry Brown no comando e Michael Jordan já proprietário do clube, ajudou o Bobcats chegar aos playoffs pela primeira vez na história e, no meio do caminho, se viu premiado com uma seleção para o All-Star Game, votado pelos técnicos. Sim, o “Crash” era enfim uma estrela.
De lá para cá, acho que você já deve estar mais familiarizado com o que se passou em sua carreira. Então vamos rapidamente: o Bobcats regrediu, os veteranos foram trocados – e Wallace já era um deles, indo para o Portland. O time tinha uma base promissora, mas acabou se implodindo, levando a cabeça do técnico Nate McMillan junto. Foi, então, repassado ao Brooklyn Nets, atendendo pedido de Deron Williams (e, dizem, Dwight Howard). Teve seu contrato renovado por US$ 40 milhões e quatro temporadas. Só durou mais uma lá, envolvido na negociação com o Celtics por Pierce e Garnett.
Ufa.
E aqui voltamos.
Ao ponto em que Wallace se desconectou da realidade.
Com uma trajetória dessas, dá para entender. O sujeito deu um duro danado para se virar “al-guém” na liga. “Você está de volta para o ponto que em que já esteve em Charlotte”, diz o ala. “Os árbitros não te respeitam mais, assim com os outros times.”
Não imaginava que passaria alguns de seus brilhantes últimos anos num time que é um saco de pancadas e não vai brigar por grandes coisas tão cedo, como o próprio Danny Ainge afirma.
Mas… Hã… Espere um pouco: de onde saiu “brilhantes últimos anos”?
Para um jogador que tem médias de 4,2 pontos, 3,3 rebotes, 2,5 assistências em 22,1 minutos, acertando 36,1% de seus lances livres (!?) e , acho que o termo não se encaixa, né? É o que ele vem oferecendo ao Celtics neste campeonato. E o que dizer dos 7,7 pontos, 6,8 rebotes, 3,1 assistências e 39,7% nos arremessos do ano passado em Brooklyn? Também não anima nada, ainda mais com um salário de US$ 10 milhões por ano – sozinho, recebe mais que Avery Bradley, Jared Sullinger, Kelly Olynyk e Vitor Faverani juntos, e ainda sobra troco.
Tem mais: não é nem um caso de jogador que esteja passando pouco tempo em quadra, obrigado a ficar fora para a turma dos mais jovens brincar. Numa projeção por 36 minutos, seus números seguem abaixo da mediocridade. Em termos de eficiência, também, lá foi ladeira abaixo, com o pior índice de sua carreira, pior até mesmo que os anos de soneca em Sacramento.
Privado de sua capacidade atlética, 12 anos depois de ter entrado para o mundo maravilhoso e perigosamente fantasioso da NBA, Wallace não conseguiu se reinventar como jogador. Tenta ser o mesmo de antes, mas não consegue. Há diversos garotos chegando, como ele, ávidos por sua oportunidade. Fica esse descompasso.
Com base em sua experiência, o jogador teria certa autoridade para se pronunciar em entrevistas e no vestiário e tentar mexer com os brios de muitos de seus jovens colegas. Mas o fato é que, de acordo com o que ele produz em quadra, fica um pouco difícil de a mensagem ser compreendida de forma devida.
Os jornalistas adoram, ao menos.