Pilar: “Precisam olhar direito para os que jogam no Brasil”
Giancarlo Giampietro
No basquete brasileiro, devido à repetição das mesmas caras, da mesma praça e do mesmo banco, o mais fácil, mesmo, é presumir as coisas e seguir no piloto automático. Acesse lá o Google Maps, peça as direções, acione o GPS, e pé na estrada. Podemos estar falando do NBB ou, no caso, da seleção brasileira, que a história é a mesma. Não importa que ainda tenhamos semifinais e uma só final para ser disputada ainda em solo nacional. Que ainda haja muito mais jogos pela frente na Europa e nos Estados Unidos. Nós basicamente já sabemos quem vai ser pré-convocado e, se tudo der certo de acordo com os planos de Rubén Magnano, quem serão, no fim, os 12 eleitos e de onde eles virão.
Há uma forte e extensa corrente que acredita que é por aí, mesmo. Que temos apenas um punhado de jogadores gabaritados, habilitados para encarar competições internacionais. Que o fiasco da seleção no último Torneio das Américas é a prova disso. Ouso discordar.
Já discutimos aqui à exaustão no ano passado, mas não custa relembrar que o técnico argentino elaborou uma lista final desastrosa, com jogadores que não se encaixavam de modo algum. Tínhamos baixinhos e pesadões em excesso, com pouca gente fazendo a ligação entre eles. Os mesmos críticos diriam e disseram: ‘Mas você acha mesmo que a troca de fulano por cicrano faria a diferença?’, como se basquete se resumisse a nomes, a grifes, e não ao conjunto que esses elementos formam. A mesma linha de indagações, imbuída de preconceito, também passa pela (falta de) experiência, visão de jogo, fundamentos e que tais de uma turma que, de fato, pouco experimentou o que se pratica lá fora.
Em sua mais recente entrevista, para o Menon, companheiro aqui da blogosfera do UOL, o mesmo Magnano chegou a me confundir um pouco, ao defender os atletas do NBB, quando, na última pergunta, o jornalista menciona o fato de o pivô Paulão ter arrebentado na competição, mesmo depois de sofrer muitas lesões nos anos recentes e de não estar na melhor forma. O argentino respondeu: “O nível do NBB não é baixo. Dois brasileiros disputaram agora o título da América”.
Dentre as muitas frases do campeão olímpico em 2004, esta pode deixar quem acompanha o discurso do treinador um pouco encafifado. Afinal de contas, no ano passado, depois da humilhação que a seleção sofreu durante a Copa América, o argentino havia dito em todas as letra algo que absolutamente rezava pelo contrário. Que sem a turma da liga norte-americana e outros da Europa não havia chance, mesmo, de pensar de modo ambicioso. É algo que não desceu bem na hora e, agora, fica ainda mais engasgado.
Primeiro porque há um abismo todo entre sonhar alto e meramente conseguir em quadra sua vaguinha para a Copa do Mundo de basquete. Entre tentar golpear o Team USA do Coach K e perder para Jamaica e Uruguai.
Né?
Mas, diante daquele que talvez seja o maior fracasso de uma vitoriosa carreira, o técnico saiu disparando, acertando muita gente no caminho, ainda mais quando usou um tom até condescendente para se referir àqueles que jogaram na Venezuela e com ele sucumbiram. Algo como: ‘Gente, nós tentamos, mas não, infelizmente, é o que temos para hoje’.
Em meio ao discurso, falou também sobre os problemas físicos que parte da delegação enfrentou por lá, é verdade, e, num torneio curto, qualquer desarranjo pode ser fatal. Como mensagem principal, no entanto, fez questão bater na tecla das poucas alternativas que lhe restavam para formar um grupo competitivo. “O maior responsável, em primeiro lugar, sou eu. A segunda responsabilidade é de todos aqueles caras que deveriam estar aqui e não estiveram, deixando a gente praticamente na mão”, afirmou, na ocasião, em entrevista ao SporTV. Seriam poucos, raros os nomes capacitados para encarar qualquer tipo de desafio, segundo a lógica. Os mesmos de sempre, não importando o que se passe em quadra.
“O que venho observando no NBB e no basquete brasileiro hoje é que está ocorrendo uma transformação”, afirma o ala Henrique Pilar ao VinteUm. “O Brasília acabou saindo e já são dois anos em que eles não chegam a uma final. Acho que existe toda uma transição de paradigmas, uma troca de geração. Estão vindo uns moleques muito bons. E a gente no Paulistano tem um time com um pessoal para quem nunca ninguém deu bola, mas que sabe que tem valor. As pessoas precisam olhar para todos os jogadores e ver o que eles têm de bom e o que não têm. Agora o que vale é observar aquilo que está se jogando, e, não, (avaliar jogador) por ter título, por sempre ter sido campeão.”
Paulistano, com uma campanha invejável desde o início do campeonato, e Mogi, em arrancada nos playoffs, para chacoalhar tantas certezas, apareceram este ano para chacoalhar algumas certezas, com elencos montados pelas beiradas, sem a grana daqueles candidatos de sempre. Pelo que noto, contudo, a tendência, ao falar sobre essas façanhas, tem sido a de valorizar o trabalho de treinadores e diretores em trabalhos que deram certo, “a despeito da referência e seus elencos de jogadores medianos, medíocres”, numa extensão de uma abordagem conformista, num ciclo vicioso, no qual as qualidades e a legitimidade dos atletas acabam sendo avaliadas, julgadas muito mais pelo que consta em seus currículos.
Estão todos num beco sem saída, sentenciados à irrelevância? E o talento natural? Não conta? Não pode ser trabalhado? Como explicar a constante atração de jovens talentos brasileiros por clubes espanhóis? Se há partes interessadas do outro lado do Atlântico, obviamente não é apenas o caso de um ou outro agente estar cumprindo seu trabalho. E, pera lá, talentos só podem ser explorados até os 19, 20 anos? Ninguém pode crescer, evoluir a partir daí? E não seria justo esperar, pedir de um profissional como Magnano – e outros vencedores – algo nesse sentido?
Bom, depois de bater algum recorde de perguntas consecutivas, paramos para abrir espaço novamente para Henrique Pilar. A entrevista com ele começou com pontos específicos sobre seu time, minutos depois da vitória no quinto jogo contra Franca, mas acabou descambando para essas inquietações. Foi rápido, o bate-papo certamente pediria mais tempo, mas o interlocutor é esclarecido o bastante para engrandecer e levantar o assunto. “Acho que é começar a olhar direito. Todo mundo aqui teve uma escola, e uma escola muito boa de basquete, podendo jogar muito bem quando tem um esquema tático armado, em que cada um saiba o que fazer. Quando existe um time como o nosso (do Paulistano), que começou e pretende ficar junto mais tempo, que tenha uma coesão”, diz o ala.
Bom, depois do que vimos na última LDB, nossa liga de desenvolvimento, não dá para escrever com tanta firmeza assim sobre o trabalho de base dos clubes em geral. Foram muitos os erros primários para atletas que ainda estão em formação, mas cuja faixa de idade em teoria já não permitira que se apresentassem tão crus assim. De qualquer forma, me chama mais a atenção a menção ao bom rendimento de sua equipe, com seus “anônimos” produzindo justamente dentro de um ambiente organizado, estruturado, no qual podem render melhor de acordo com suas características.
Neste ponto, o maior mérito de Gustavo de Conti parece estar na sua prospecção de mercado, na sua capacidade para identificar e contratar talentos sem ter o cofre mais endinheirado. Este não é o primeiro grupo competitivo que ele consegue montar às margens das grandes contratações, sem prioridade na escolha. A diferença que vejo no Paulistano 2013-2014 é uma combinação melhor de peças, formando um time, se não revolucionário, mais orgânico em quadra. “Esse foi um propósito do Gustavo”, afirma Pilar. “Até quando ele me contratou, me falou que gosta de trabalhar com caras versáteis, que podem fazer várias funções, até para (compensar) a eventual ausência de um ou outro. Desde o começo nosso time teve esse propósito, e vem amadurecendo.”
Versatilidade sempre foi o forte desse atleta. A primeira vez que o vi jogar foi há mais de dez anos, quando ele era apenas o Henrique Macia, um jovem e bastante alto armador que fazia a transição da base para o adulto do Hebraica, sob a orientação de Adriano Geraldes. Dividia, na época, seus dias com o estudos na faculdade de Filosofia, sem saber exatamente se seguiria como jogador, embora fosse evidente sua predisposição pelo esporte. Acontece que de modo algum a carreira de basqueteiro era algo garantido. O cara penou um bocado até chegar a um estágio em que sua opção de vida não pode ser mais questionada, passando pela Nossa Liga com o Londrina, ressurgindo como um ala-pivô cheio de double-doubles no ABC Paulista, quando ganhou suas primeiras e breves manchetes.
Sim, Pilar se firmou como um jogador de ponta no basquete brasileiro, se encaixando muito bem no quinteto titular do Paulistano após disputar três NBBs pelo Bauru. No duelo derradeiro com Franca, arrebentou: foram 26 pontos em 30 minutos, matando todas as sete bolas de dois pontos que tentou, somando aí os 50% em três pontos (3/6). Claro que esse não é o padrão de apresentação do ala. Os 26 pontos representaram um recorde pessoal. Na temporada, tem médias de 12,03 pontos, 3,8 rebotes e 1,8 assistência.
Nessa partida, porém, o que impressionou não foi necessariamente sua produção. Mas, sim, o modo como executou. Pilar conseguiu dosar agressividade e paciência, atacando na hora certa, como o aproveitamento de 100% no perímetro interno explicita. Embora a mecânica seja ainda um pouco estranha, sua pontaria nos tiros de fora vem crescendo ano após ano, subindo dos 33,9% de 2011 para os 44,9% deste ano, no qual está flutuando mais pelo perímetro, numa dinâmica interessante com seus intercambiáveis companheiros de equipe.
É a partir da linha de três também que Henrique pode oferecer outras facetas a uma linha ofensiva. Com 1,98m e facilidade no drible, o jogador pode cortar para o centro e enxergar a quadra por cima da defesa, conseguindo girar a bola de um lado para o outro com facilidade, a partir de seus cortes para a cesta. Um facilitador e o tipo de característica que não se vê a toda hora por aí.
Não estamos tratando de nenhum Andre Iguodala ou Scottie Pippen aqui, claro. Pilar tem suas limitações. Volta e meia, pode se meter numa fria em quadra, encurralado, a ponto de entregar a bola para o torcedor ou adversário. Se não estiver com os pés plantados em quadra, seu chute tende a perder eficiência. Na defesa, ainda é preciso ver como ele reagiria se fosse confrontado mais vezes por atletas mais velozes e explosivos, ainda que na sexta passada tenha feito um sólido trabalho contra Jhonatan e Eddie Basden.
A ideia, na verdade, não é defender a convocação ou eleger como salvador da pátria um atleta específico. Em meio a tantos atletas que são pausterizados numa grande massa de aparente mediocridade, Pilar vira o personagem aqui muito por minha familiaridade com sua trajetória, por tê-lo visto crescer no decorrer de uma década, e também por sua disposição a falar sem receio de pisar em calos, ciente de que, a essa altura, já não tem nada a perder.
“Prefiro nem pensar nisso”, afirma. “Não quero… Tipo, eu venho jogando pelo Paulistano, pensando no Paulistano, jogando o NBB. Penso no que tenho de jogar, não fico me iludindo, colocando coisa na cabeça que não tem por quê. Prefiro ir jogando, vendo as conquistas que temos até agora. Depois penso no que pode acontecer. Ou, depois tudo pode acontecer, e eu só acataria as circunstâncias.”
Não fiz a enquete, mas é cômodo arriscar que esse sentimento, um tanto resignado, abrange a esmagadora maioria dos 40 e tantos jogadores que iniciam as semifinais do NBB nesta segunda-feira. Afinal, entre os quatro clubes restantes, quantos de seus atletas têm sido constantemente convocados? Citei, no Twitter, Marquinhos e Marcelinho Machado. Também tem o Vitor Benite, e o Guilherme Giavoni me lembrou do Caio Torres, hoje no São José, é verdade. Fica nisso.
Agora, o pivô revelado pelo Pinheiros encara aquilo que de certa forma já é um tabu. Ser completamente ignorado não é um privilégio da turma dos azarões como Paulistano e Mogi. Que o diga o armador Fúlvio, outro que faz a festa de qualquer bloquinho de anotações, já escaldado quanto ao tema. “Para quem ainda quer ir para a seleção, já falei para não vir para São José… Aqui você pode fazer chover, que não vai”, replicou.
Será possível que nenhum dos jogadores que ainda sonham com o título do NBB seriam capaz de prorrogar suas temporadas para a disputa de qualquer Sul-Americano ou Copa América? Rubén Magnano obviamente tem conhecimento de causa e os olhos muito mais bem treinados do que qualquer blogueiro babaca. Só esperemos, contudo, que, na sua posição, o treinador tenha a cabeça aberta.
* * *
Abaixo, a íntegra do rápido papo com Henrique Pilar:
21: Percebe-se um constante revezamento entre você, Renato, César, com versatilidade o suficiente para atacar dentro e fora. Como funciona essa dinâmica?
Henrique Pilar: Esse foi um propósito do Gustavo. Até quando ele me contratou, me falou que gosta de trabalhar com caras versáteis, que podem fazer várias funções, até para a eventual ausência de um ou outro. Desde o começo nosso time teve esse propósito, e vem amadurecendo. Hoje estou muito bem adaptado a isso, fazendo a 3 ou a 4, com uma boa frequência, para poder chegar ao playoff realizando isso muito bem.
Além de vocês três, obviamente os americanos têm responsabilidades ofensivas e também podem atacar pelo drible. No fim, parece que se divide mais as responsabilidades em vez de se concentrar em uma ou duas referências?
Melhor, né? Se você pega um time que tem um cara para marcar só, um cara a ser batido, a gente pode resolver os problemas com mais facilidade. Agora, se você tem cinco caras na quadra, e todo mundo que entra pode definir, fica mais difícil.
Agora falando sobre sua evolução. Lembro de ver você subir pelo Hebraica basicamente como armador. Depois, você despontaria no ABC como um cara bastante voltado para o jogando lá dentro, como um pivô. Hoje, parece ter encontrado um meio termo. É por aí?
No final das contas, eu sou mais um 3. Pelo menos hoje. Agora, posso levantar vantagem também jogando como 4. Consigo marcar um 4 alto e ao mesmo tempo tendo o corte para atacar. Como armador ficaria um pouquinho complicado, acho que já passou o tempo. Exerço muito mais a função de um 3 no time, mesmo.
No Paulistano, se a gente for considerar o que se estabeleceu no mercado brasileiro, dá para falar que não há atletas de grife, mas não parece ser um impedimento para o time. Concorda? E aqui está o time na semifinal, depois de ótima campanha na temporada regular.
Tenho uma opinião formada sobre isso. O que venho observando no NBB e no basquete brasileiro hoje é que está ocorrendo uma transformação. O Brasília acabou saindo e já são dois anos em que eles não chegam a uma final. Acho que existe toda uma transição, até pensando na seleção brasileira também, uma troca de geração. Estão vindo uns moleques muito bons. E a gente no Paulistano tem um time com um pessoal para quem nunca ninguém deu bola, mas que sabe que tem valor. As pessoas precisam olhar para todos os jogadores e ver o que eles têm de bom e o que não têm. Agora o que vale é observar aquilo que está se jogando, e, não, (avaliar jogadores) por ter título, por sempre ter sido campeão. É um momento de transição no paradigma do basquete brasileiro.
Você acharia absurda a cogitação de sua convocação para a seleção ou de algum de seus companheiros?
Eu prefiro nem pensar nisso. Não quero… Tipo, eu venho jogando pelo Paulistano, pensando no Paulistano, jogando o NBB. Penso no que tenho de jogar, não fico me iludindo, colocando coisa na cabeça que não tem por quê. Prefiro ir jogando, vendo as conquistas que temos até agora. Depois penso no que pode acontecer. Ou, depois tudo pode acontecer, e eu só acataria as circunstâncias.
O técnico Rubén Magnano já deu a entender que não conta muito com a mão-de-obra do NBB em sua seleção ideal, como atletas importantes para a seleção. Acha que o talento natural do jogador em atividade no Brasil pode ser subestimado?
Acho que é começar a olhar direito para as pessoas que jogam aqui. A mídia brasileira também quer muito só criticar, trabalhar com grife, e não tem por quê. Todo mundo aqui teve uma escola, e uma escola muito boa de basquete, podendo jogar muito em quando tem um esquema tático armado, em que cada um saiba o que fazer. Quando existe um time como o nosso (do Paulistano), que começou e pretende ficar junto mais tempo, que tenha uma coesão. É difícil montar um time e já sair jogando.
E como foi o desenvolvimento, então, desse Paulistano, para se dar certo?
A gente teve a sorte de todo mundo aqui entender o que precisa ser feito. A gente conseguiu estabelecer o que cada um faz em quadra, e isso vai crescendo a cada dia no playoff. A gente sabe o que se espera e vai lá e faz, executa. Não sou só eu, é o Des(mond Holloway), o César, o Pedro, o Manteiga, todo mundo que joga aqui. Eu não fiz uma boa série, por exemplo, mas hoje fiz um bom jogo. E vai ser a mesma coisa contra São José. Se eu puder fazer cinco jogos bons, ótimo. Se não puder, alguém vai aparecer. Todo mundo pode fazer.
A última: neste quinto jogo contra Franca, vimos um clima bem mais agitado no ginásio, e está certo que a torcida deles contribuiu bastante para isso. Com o Paulistano na semifinal, fica a expectativa de que se repita? Que o Paulistano consiga encher sua casa numa metrópole como São Paulo?
Acho que a gente tem torcida, embora falem esse negócio que o Paulistano não tem torcida. Pode não ser uma torcida organizada, fanática como Franca ou São José, mas temos torcida. Andamos pelo clube e sempre tem quem nos apoie. Acho que isso é uma coisa criada para desmerecer um pouco o clube. Aqui tem também. Pode ser um pouco diferente. Mas hoje, por exemplo, a gente limitou um pouco a entrada do pessoal de Franca e colocou a nossa torcida. Não tem sentido, que eles sejam maiores que a gente. Não, a gente é maior. Se forem dar metade para eles, vão gritar mais. Mas agora, não. Agora a gente vai fazer que essa seja a política do Paulistano.