A Fiba Américas agora é da Venezuela e Néstor García. Ou quase isso
Giancarlo Giampietro
Argentina, Brasil. Brasil, Argentina. Se bipolarização é o nosso esporte, o basquete sul-americano seguiu por muito tempo na mesma. Até que a Venezuela decidiu bagunçar um pouco essa história, com seu primeiro título continental desde o bicampeonato do Trotamundos de 1988-89. Isto é, também o primeiro título com este formato. Além disso, ao derrotar, em sequência, Mogi e Bauru, o Guaros de Lara garantiu ao país a unificação dos dois principais títulos regionais no mundo Fiba, entre os rapazes. Primeiro haviam chocado a geração NBA do Canadá. Agora puseram fim a uma hegemonia brasileira na competição.
Os clubes brasileiro chegaram ao final four da liga com 75% de chances de título, já que o Flamengo também estava na luta contra os anfitriões. Mas dessa vez não deu, e não dá para dizer que tenha sido uma surpresa. Este Guaros fez de tudo para chegar lá. De gestão gastona, mas elogiada nos bastidores por saber para onde destinar seus investimentos, montou um grande elenco e ainda tinha um treinador competente para orientá-los.
>> Não sai do Facebook? Curta a página do 21 lá
>> Bombardeio no Twitter? Também tou nessa
O detalhe é que o clube venezuelano conseguiu jogar sempre em casa, a cada etapa, se aproveitando de um regulamento que permite tudo e não valoriza critérios técnicos. Em vez de estipular prioridades com algum senso de justiça com com base em resultados, ranking, a Fiba Américas, seguindo o modelo da matriz, simplesmente abre concorrências pouco transparentes e altamente rentáveis. Daí chegamos à ridícula (ou, vá lá, questionável) decisão de, numa festa em que 75% dos representantes eram brasileiros, a minoria foi felicitada.
Quanto os venezuelanos pagaram para superar as candidaturas de Mogi e Rio (que, aparentemente, foi descartada de cara)? Vai saber. Mas deve ser algo substancioso, para se ignorar a possibilidade de reunir três torcidas distintas num mesmo ginásio, em vez somente de um — barulhento, é verdade — público do Guaros.
De novo: como o processo nunca é detalhado, qualquer observador tem a inclinação a dar asas à imaginação. E vem desse buraco a linha de raciocínio de que talvez fosse a hora de algum outro país levar o caneco. Vai saber. Também por conta de um regulamento esportivo esdrúxulo, tivemos um desfecho estranho no último quadrangular semifinal, no mesmo Domo Bolivariano, que resultou na queda de Brasília. O mesmo Brasília que ao menos havia, um dia antes, vencido o Guaros por conta própria — e que também os havia derrotado pela segunda fase. De todo jeito, o time do DF também tinha a chance de se classificar sem depender dos outros e, quiçá, compor um histórico Final 4 brasileiro, mas complicou ao perder de muito para o Flamengo.
O Guaros fez das suas, se intrometeu na fase decisiva e conseguiu um grande título, sem ser exatamente soberano. Pela semifinal, a equipe anfitriã penou contra Mogi (81 a 73), um adversário que provou que era pura bobagem o empurra-empurra com o Flamengo dias antes. Como consolação, o estreante superou os rubro-negros e garantiu mais que honroso lugar no pódio (73 a 71).
Depois, valendo o título, veio o último golpe de sorte a favor do Guaros. O Bauru teria de buscar o bicampeonato sem dois titulares – Fischer e Hettsheimeir, dois de seus três principais jogadores. Para piorar, o armador suplente, Paulinho, também estava fora. Ainda assim, Bauru fez um jogo duro até o final (84 a 79), com Demétrius dando 17 minutos a um pivô de 19 anos (Wesley Sena, que faz sua primeira temporada realmente efetiva na rotação) e um armador de 18 anos (Guilherme Santos, lançado aos poucos, com 35 minutos no total pelo NBB. Dá para conhecer um pouco mais sobre ele aqui, com scouts da NBA na plateia). Para esses garotos, aliás, estar em quadra com rivais tão experientes, num ambiente como aqueles, já vale como um mês inteiro de cancha.
O Bauru, como se esperava, não teve muita facilidade na articulação de suas jogadas. Especialmente no quarto período em que seus atletas se viam constantemente obrigados a atirar de muito longe, bem marcados e sem equilíbrio algum, antes que a posse de bola estourasse. O belo aproveitamento nos rebotes ofensivos ao menos evitou que seu oponente desgarrasse no placar um pouco antes.
(O ponto positivo é a recuperação de Murilo, se movimentando com confiança e leveza. Se havia um jogador que merecia o título, era o veterano pivô, que passou por muitas dificuldades nas últimas duas temporadas, dentro e fora de quadra, entre lesões graves. Entre a experiência para os garotos, a demonstração de força perante os desfalques e a virada para cima do Flamengo, pela semi, a equipe paulista ganha bons argumentos para voltar para casa de cabeça erguida.)
Nos minutos finais, porém, uma bola de três pontos de Tyshawn Taylor e uma cesta+falta em Damien Wilkins fizeram a diferença, em sequência. Justamente dois dos ótimos reforços que o clube foi buscar, ao lado de um terceiro americano também produtivo, o ala Zach Graham. Taylor e Wilkins são talentos de NBA, ou quase. O jovem armador foi draftado pelo Nets e dispensado muito cedo – e foi contratado durante o torneio, daqueles movimentos que a Fiba também permite sem o menor controle. O veterano ala tem longa passagem pela liga, teve seus momentos aqui e ali e hoje busca mais alguns trocados mundo afora.
MVP da fase final, Wilkins foi sempre um porto seguro para os venezuelanos como referência ofensiva, matando 6 em 11 lances livres e descolando ainda mais sete pontos em lances livres. Com vasta bagagem, altura, força, personalidade e fundamentos, é o tipo raro de jogador no mundo Fiba que vai conseguir aguentar o tranco e bater o incansável Alex Garcia. Esses gringos se juntaram a uma base bastante experiente, de jogadores que entram e saem da seleção nacional.
Sobre o caráter de Wilkins, falo sobre seu histórico na NBA. O ala tem um sobrenome de peso, mas se virou na liga sem a capacidade atlética que seu tio e seu pai ostentavam. Foi com suor e como boa companhia no vestiário. Se errou lances livres peopositais contra o Flamengo, foi por ordem de seu treinador. Poderia contestar a ordem, claro, mas não é o pedido fosse ilegal. Assim como faltas intencionais em péssimos arremessadores no segundo ou quarto período, está no regulamento e não há muito o que ser feito.
E aí chegamos a Néstor Garcia, que vai chegar ao Rio de Janeiro cheio de moral, como campeão continental em duas esferas. O sujeito se transformou na Venezuela. Se não taticamente, mas pessoalmente, com uma persona que mais parece a de um torcedor do que um técnico na lateral da quadra. Seus trejeitos exagerados, seu uniforme todo amassado e/ou esgarçado gera empatia impressionante com o torcedor (e certo estranhamento por parte de seus americanos, é verdade).
Da campanha surpreendente pela Copa América, ''Che'' é o ponto comum mais óbvio. Daquele elenco, apenas o intrigante e inconstante ala-pivô Windi Graterol foi campeão da Liga das Américas. Em ambas as conquistas, o campeão foi definido aos trancos e barrancos, em jogos apertados, emocionantes, nos quais suas equipes conseguiu se manter equilibrada, consistente em quadra, mas também empurrada pela torcida – tal como aconteceu no México, com os espectadores de público recorde abraçando.os venezuelanos. Será que no Brasil a torcida terá essa boa vontade? Há mais que uma simples conexão latina aqui, sabemos. Será uma nota curiosa entre tantos assuntos olímpicos.
Mas não sei se podemos tirar muitas conclusões aqui. As circunstâncias da Copa América para a Liga das Américas é bem diferente. Na primeira, a Venezuela era uma zebraça. Na segunda, a equipe venezuelana era uma das favoritas. Vale monitorar, mas não indica exatamente um problema para o basquete brasileiro, por exemplo. A mera possibilidade de reunir quatro times num Final 4 seria impensável cinco anos atrás, antes de as conquistas começarem.