Toronto Raptors, dois brasileiros, nós e o Norte
Giancarlo Giampietro
30 times, 30 notas sobre a NBA 2014-2015
Em 1995, a NBA anunciou que incorporaria duas franquias canadenses ao seu campeonato. A liga ainda curtia a popularidade de um Michael Jordan, já havia se beneficiado aos montes com a empreitada do Dream Team nos Jogos de Barcelona e estava pronta para dar mais um passo importantíssimo em seu processo de internacionalização. Nasceram, então, o Toronto Raptors e o Vancouver Grizzlies.
>> Não sai do Facebook? Curta a página do 21 lá
>> Bombardeio no Twitter? Também tou nessa
As duas equipes tiveram dificuldades naturais para engrenar no princípio. Eles tinham de se montar a partir do zero, a partir do Draft de Expansão, no qual os demais clubes têm o direito de proteger oito atletas de seus elencos, sobrando apenas a rebarba para os irmãos canadenses. Acontece que, sob a direção do hoje esculhambado Isiah Thomas e de Glen Grunwald, o time de Toronto garimpou melhor no mercado e no Draft, enquanto em Vancouver as coisas só pioravam.
Em seis campanhas, a equipe não conseguiu superar a marca de 28% de aproveitamento. Cinco técnicos foram contratados e demitidos. A média de público despencou de 17,1 mil na primeira temporada para 13,7 mil na sexta, com uma ajudinha de um lo(u)caute no meio do caminho, em 1998. O dólar canadense também estava desvalorizado, aumentando as dívidas da gestão. Quando o grupo Orca Bay fechou a venda da franquia para Michael Heisley, em janeiro de 2001, o bilionário de Chicago havia dito que sua intenção era mantê-la na cidade. Heisley sabia, oras, que dias antes a NBA havia vetado um negócio com Bill Laurie, que pretendia levá-la para St. Louis. Meses depois, contudo, após uma campanha duvidosa para difamar Vancouver, já estava fazendo uma turnê pelos Estados Unidos em busca de possíveis portos para realocação. Encontrou Memphis.
Esse contexto é importante para entender o momento vivido pelo Raptors. O clube passou por mais bocados durante a década passada, saindo dos anos eufóricos de Vince Carter a uma preocupante depressão, com Rafael ''Baby'' Araújo, Chris Bosh, Jorge Garbajosa, Anthony Parker e outros personagens no meio do caminho. Ainda que o produto em quadra não fosse dos mais interessantes, o aspecto comercial foi bem desenvolvido, conquistando uma sólida base de torcedores e parcerias no mundo corporativo. Eles eram o time do Canadá.
Reparem, então, como, no decorrer dos anos, a cor dos uniformes, por exemplo, migrou gradativamente do roxo para o vermelho. O dinossauro do primeiro logo perdeu seu aspecto cartunesco e foi encolhendo. Hoje, o finado animal está representado por uma simples e discreta pata com três garras que, nessas coisas da semiótica, remete direta ou indiretamente, dependendo do ponto de vista, a uma folha de maple (para eles, bordo para nós), o símbolo da bandeira nacional.
Para culminar, na temporada passada eles lançaram com estrondoso sucesso a campanha ''We, The North'' (Nós, o Norte), que virou coqueluche na metrópole com camisetas, cartazes, outdoors e, dãr, #hashtag. Eles, do norte, assumindo de maneira interessante, orgulhosos, sua condição geográfica austral, o que não é tão lógico assim. Quanto mais ao Norte, mais frio. Não o frio paulistano de 12ºC, e, sim, o frio gélido bem pertinho do ártico, abaixo de zero e tal. É o tipo de clima que faz com que, nas obras anglo-saxônicas de ficção, o ''povo do Norte'' seja invariavelmente associado a nobres austeros – porque seria assim a vida por lá, com as condições inóspitas exigindo mais trabalho, empenho, seriedade etc., ao contrário dos folgados de um Sul mais quente. Que nos digam os inimigos Stark e Lannister de George R.R. Martin (e da HBO).
Então aí está o marketing da franquia fazendo empréstimos desse tipo de mitologia. O slogan serviu para unir ainda mais uma das bases de torcedores já considerada das mais fervorosas e fanáticas da liga. A ponto de, na abertura dos playoffs 2014, vermos milhares e milhares de pessoas reunidas do lado de fora do Air Canada Centre, no centro de Toronto, para assistir num telão ao primeiro embate de playoff da equipe depois de seis anos, contra o Brooklyn Nets. Uma cena muuuuito rara no cotidiano da liga.
Ainda mais rara – e absurdamente engraçada, vai – foi a manifestação do chefão das operações de basquete do clube, Masai Ujiri, naquele sábado histórico, diante da multidão de torcedores fora do ginásio. Provavelmente com a adrenalina a mil, sentindo aquela vibração descomunal, o dirigente nigeriano soltou logo um entusiasmado ''F***-se, Brooklyn!'' no microfone, de modo chocante. A galera foi ao delírio, claro. A liga, nem tanto: o dirigente acabou multado em US$ 25 mil. Ainda que daria para fazer uma boa aposta que, secretamente, os gestores tenham rachado o bico e só tenham decidido aplicar a punição por não haver outro modo, mesmo, de lidar com o causo. Além do mais, Ujiri ganha US$ 3 milhões por ano como um supercartola e, caso fizesse uma vaquinha com os torcedores, certeza que pagaria a taxa com tranquilidade e ainda sobraria um troco para um sorvete.
Ujiri foi o homem que selecionou Bruno Caboclo, para choque geral dos especialistas. O mesmo que foi atrás de Lucas Bebê um ano depois de ter falhado em sua missão de também assegurar os direitos sobre o pivô carioca no Draft. E aí que, num estalo, a metrópole canadense se tornou a capital brasileira no basquete da América do Norte. Tipo: agora são eles e 'nós' do Norte. O único senão aqui: para ver a dupla em quadra, vai demorar um pouco. Ambos são vistos como projetos de médio para longo prazo. Tanto o ainda adolescente Caboclo como Bebê, que, aos 22 anos e temporadas de Liga ACB nas costas, já deveria estar num ponto mais adiantado em sua curva de aprendizado.
Nos primeiros jogos do Raptors, conforme o esperado, os rapazes não vêm sendo nem relacionados pelo técnico Dwane Casey, que tem optado pelos veteranos Landry Fields e Greg Stiemsma no preenchimento de seu banco. Dois caras bem mais experimentados, preparados. De modo que, por enquanto, Bruno e Lucas não terão chance de jogar nem mesmo numa surra como a deste domingo sobre o Philadelphia 76ers, o lanterninha da liga e o jogo mais provável para seu aproveitamento.
''Vai levar um tempão para caras como Bruno e Bebê (estarem prontos), então vamos ser pacientes. Ainda somos uma equipe jovem'', disse Ujiri, sobre os garotos. É o tipo de frase que o espectador brasileiro precisa ter em mente na hora de checar as fichas dos jogos do Raptors e não ver a dupla relacionada. E Ujiri tem razão nesse aspecto: o núcleo principal da equipe ainda vai crescer.
Se o plano do dirigente der certo, os promissores atletas vão se juntar a um elenco mais maduro e ainda mais forte. Futuro próximo? Dois anos? Vai saber. É uma preocupação que um scout da NBA demonstrou em entrevista para o blog, lembram? O Raptors não tem uma filial na D-League. Então toda a evolução dos brasileiros ficará por conta do trabalho individual com os treinadores durante uma temporada corrida, na qual eles competem para já. No Leste, distante de Memphis. E pelo Canadá.
O time: na temporada passada, Casey fez um dos trabalhos mais formidáveis. O plano de Ujiri, todos sabem, era implodir seu elenco e apostar numa derrocada rumo ao Draft estelar de Andrew Wiggins, Jabari Parker e Joel Embiid. Despachou Andrea Bargnani e Rudy Gay. Deu errado: digo, de acordo com essa ideia original. Porque a equipe melhorou, e muito.
A bola começou a girar de um lado para o outro, Kyle Lowry, DeMar DeRozan e Terrence Ross gostaram da responsabilidade maior e cresceram. O banco de reservas foi bastante produtivo, com Patrick Patterson assessorando a entrosada dupla Jonas Valanciunas-Amir Johnson. A melhor química resultou também numa melhora do sistema defensivo, com os atletas mais conectados. Ao final da campanha, o Raptors era um dos poucos posicionados entre os dez ataques e defesas mais eficientes da liga, ao lado de gente como Spurs, Heat, Clippers e Thunder.
Para este campeonato, a base está mantida. Os reforços que chegaram são peças complementares, para deixar a segunda unidade ainda mais sólida. O ala James Johnson endireitou a cabeça, vem de bela campanha pelo Grizzlies, fez as pazes com Casey e retorna a Toronto para fortalecer a defesa no perímetro. Lou Williams pode ter perdido muitos jogos pelo Hawks devido a uma séria lesão no joelho, mas ainda é mais habilidoso e explosivo que John Salmons. Se Lowry e DeRozan mantiverem o ritmo, a estrutura ao redor deles será o suficiente para lhes posicionar bem nos mata-matas. Dependendo do progresso de Ross e Valanciunas, as metas vão crescer.
A pedida: ir longe nos playoffs e, dependendo do nível que Bulls e Cavs tiverem atingido, sonhar, talvez, com uma final?
Olho nele: Terrence Ross. Porque vale a pena observar com atenção qualquer jogador que passe da barreira dos 50 pontos numa partida, não? Foi o que o ala de 23 anos conseguiu numa derrota para o Clippers no dia 25 de janeiro, assustando a imprensa norte-americana. A quantia é emblemática, mas o mais interessante é o modo como ele a atingiu, que mostra todo o seu potencial. Veja:
Ross é um desses atletas especiais que poderia competir tanto no torneio de enterradas como no de chutes de três pontos num All-Star Weekend. Além disso, é agil e tem envergadura para dar trabalho na defesa.
Abre o jogo: ''É tanto dinheiro que eu guardo logo na minha conta. Talvez algo no futuro, mas não sei'', Bruno Caboclo ao ser questionado em Toronto sobre o que faria com o seu primeiro pagamento.
Você não perguntou, mas… a grande temporada do Raptors realmente foi produto do acaso. De vários causos fortuitos, mesmo. Por exemplo: quando a franquia acertou uma troca com o Houston Rockets para receber Kyle Lowry, esse era apenas um plano B do então presidente Bryan Colangelo. A principal opção do dirigente, que acabou substituído por Ujiri, era Steve Nash – negociação que acompanhava perfeitamente a guinada canadense do time. O veterano havia se tornado um agente livre em julho de 2012 e estava disposto a conversar com a franquia de seu país natal. Quando o Lakers surgiu para atrapalhar tudo, Colangelo se viu obrigado a procurar outras alternativas. E veio Lowry, de quem o Rockets queria se livrar para limpar sua folha salarial e também por que andavam cansados da dor-de-cabeça que o armador causava, de tanto reclamar que não aceitaria ser reserva. A ironia é que, a princípio, em Toronto ele também chegaria para ficar no banco de Nash.
Um card do passado: Damon Stoudamire. Além do aspecto comercial e logístico, o Raptors também teve mais sucesso que o Grizzlies na montagem de seus primeiros elencos. Para 1995-96, sua primeira temporada, enquanto Vancouver foi de Bryant Reeves, Toronto selecionou o baixinho Stoudamire, de 1,78 m, para sua armação. Vindo da Universidade do Arizona, o talentoso armador, apelidado de Mighty Mouse (Super Mouse, aqui) foi a primeira grande esperança da franquia, tendo impressionantes médias de 19 pontos e 9,3 assistências como novato. Também foi a primeira grande esperança a deixar a equipe precocemente, forçando uma troca para o Portland Trail Blazers, de sua cidade natal. O mesmo aconteceria com Vince Carter, Tracy McGrady e Chris Bosh, numa sina daquelas (os impostos em Toronto são mais caros e ainda existe uma espécie de preconceito entre os atletas contra a ideia de viver no Canadá, acreditem). A carreira armador nunca mais teve tanto brilho. Ele ainda jogou pelo Grizzlies, mas em Memphis, teve uma curta passagem pelo Spurs e se aposentou em 2008. No mesmo ano, começou a trabalhar como treinador. Em fevereiro de 2009, retornou a Memphis para integrar a comissão técnica de Lionel Hollins, tendo sido importante no desenvolvimento de Mike Conley Jr. Hoje, é um dos assistentes de Sean Miller na sua alma mater, Arizona.