Vinte Um

Por uma noite, pelo menos, o pesadelo de Kyle Lowry acabou

Giancarlo Giampietro

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Kyle Lowry mal podia acreditar no que acontecia em Miami. Era final de primeiro tempo, e o aro parecia tão vedado como o do Air Canada Centre. Ele seguia para o vestiário ainda cabisbaixo, com quatro pontos anotados em seis chutes, tendo desperdiçado todas as três tentativas de longa distância, sem nenhum lance livre batido. Continuava seu pesadelo pelos #NBAPlayoffs 2016.

Até aquele momento, o armador e líder do Toronto Raptors havia acertado apenas 43 de 139 arremessos de quadra, ou 30,9%. Se for para ficar apenas com os tiros de fora, estava encarando o fato de que 51 dos 60 havia tentado pelos mata-matas haviam dado aro, se tanto. Mesmo nos lances livres a coisa não estava tão boa assim, com 68,8%. Tudo isso lhe dava média de 13,5 pontos por partida.

Não podemos confundir Lowry com um Stephen Curry de jeito maneira. Mas não é que ele estivesse no nível de um Rafer Alston ou Mike James também. Pela temporada regular, suas médias foram de 21,2 pontos, 42,7% nos arremessos, 38,8% de fora e 81,1% nos lances livres. Um All-Star e com cartaz para ser eleito para um dos três quintetos ideias da temporada. Mais que justo.

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Daí que era muito complicado de entender o que se passava nestes playoffs. Ninguém conseguia dar uma explicação razoável. Nem ele, nem seus companheiros ou técnicos. Até que, na volta do intervalo, de repente alguém se lembrou de ligar a chavinha. Em um segundo tempo espetacular, o armador acertou 9 de 13 tentativas de cesta no geral, com 100% nos chutes exteriores (5-5!), somando 29 pontos no segundo tempo, o mesmo que um Dwyane Wade. Era como se, do nada, de lacrado, o aro tivesse ganhado a vastidão de todos os mares pelos quais passam os navios de Micky Arison, proprietário do Miami Heat e também da maior operadora de cruzeiros marítimos do mundo. Era tão inexplicável quanto o período de seca.

''Kyle voltou a ser o Kyle'', disse Dwane Casey. ''Este é o Kyle que conheço'', disse DeMar DeRozan. ''Eu não duvido de mim. Não existe essa coisa de duvidar de si mesmo'', afirmou o astro do Raptors.

Ah, então é simples assim? Que uma hora a maré tinha de virar a seu favor.

Acho que foi o Paulo Cleto que inventou o termo: confiatrix. Como se fosse uma das poções mágicas dos quadrinhos de Asterix que o atleta pudesse tomar entre um jogo e outro e aí desembestar a ganhar. Para o tênis, seu metiê, isso fica muito claro. Afinal, os tenistas estão por conta em quadra, encarando o jogo que considero o mais exigente, em termos de precisão técnica, desgaste físico e, principalmente, força mental.

Mas essa coisa de crise de confiança, ou excesso de, vale para qualquer esporte, claro, inclusive o basquete. Se a tal da poção existisse, e não fosse doping, Lowry muito provavelmente não hesitaria em pagar um ano inteiro de seu salário para usá-la. No seu caso, seriam US$ 12 milhões. Tudo para poder reencontrar a boa forma durante os playoffs. Até sexta-feira, o cara vinha com o terceiro pior aproveitamento de quadra dos mata-matas entre jogadores que arriscam pelo menos dez chutes em média, acima apenas de Jae Crowder e Trevor Ariza. Nenhum desses alas já foi considerado um cestinha de mão cheia, e Crowder jogou sua série contra o Atlanta Hawks com o tornozelo estourado. Se fosse para ampliar o escopo, o departamento de estatísticas da NBA havia encontrado um dado ainda mais estarrecedor. Com um mínimo de 100 arremessos realizados, Lowry tinha o pior aproveitamento dos últimos 50 anos:

Estava sofrendo. Acredite, é possível ver um esportista milionário sofrer. Por isso, na madrugada de terça para quarta-feira, estava de volta à quadra do Air Canada Centre para ficar arremessando por conta própria, sem nenhum membro do estafe do Raptors, com uma escada embaixo da tabela, e o ranhido de seu tênis e a batida da bola no tablado ecoando pela arena.  Só deixou o ginásio depois da 1h, pouco depois da derrota para o Miami pelo Jogo 1 das semifinais — de novo a franquia canadense abria uma série em casa com revés, repetindo o que havia acontecido contra Brooklyn em 2014, Washington em 2015 e Indiana pela primeira rodada este ano. Lowry estava ouvindo música e chutando, sem ninguém por perto. A explicação: queria voltar às raízes, quando passava hora e horas com a bola, por conta, arremessando em algum parque ou quadra de Philly, se divertindo, sem distração ao redor — ou justamente para se distrair. Quem nunca? (O mais cínico vai falar em golpe de marketing, já que os jornalistas ainda estavam presentes, despachando seus textos em altas horas. Mas não faz muito o estilo do baixinho.)  

Quando alguém se envolve com um jogo, pressupõe-se que esteja lá para ganhar, competir, fazer dinheiro e, sem problema, se divertir também, seja lá qual dor a ordem de prioridades aqui. Pela NBA, haaaaja competição, amigo. São 82 partidas de temporada regular, 3.936 minutos. O atleta, então, supostamente encara essa maratona para só cumprir tabela. Essa briga toda é para chegar aos playoffs, a não ser que jogue pelo Philadelphia 76ers. Para a maioria alguns times, disputar a fase final já é gratificante o suficiente: esportivamente, com a sensação de missão cumprida, e financeiramente, com mais ingressos vendidos a um preço elevado, a renovação de carnês e patrocínios.

Para Lowry, o que está em jogo é a reputação em quadra. Grana não é problema: ele tem mais um ano de contrato com a franquia canadense, valendo mais US$ 12 milhões, e vai entrar no mercado de agentes livres em 2017 preparado para receber mais uma bolada. A não ser que seu desastroso desempenho pelos playoffs se estendesse à temporada seguinte, o que seria impossível, né? ''Estou apenas tentando reencontrar meu caminho, meu toque. Não sei por onde ele anda, é algo que está mexendo com minha cabeça. É frustrante'', disse, mesmo depois da vitória pelo Jogo 2, quando voltou a patinar. ''É maluco. Quando estou sozinho, sem ninguém, arremesso bem. É muito diferente. Jogar mal assim quando todos os olhos estão em mim me enche, porque sei que sou muito melhor que isso. Só tenho de dar um jeito nesta m…'', afirmou, completando também que não se tratava mais da bursite no cotovelo que o incomodou na reta final da temporada. O repórter Josh Lewenberg, setorista pelo grupo TSN, porém, postou uma imagem supostamente destes playoffs que apontaria o contrário, todavia. Aí o armador se sai com algo ambíguo: ''Sempre digo a verdade para vocês, caras, na maioria das vezes… Exceto quando estou contundido'', disse, sorrindo.

Neste sábado, aparentemente num intervalo de cerca de 20 minutos, se havia algum incômodo no cotovelo, desapareceu. Era como se as mais de 19 mil pessoas presentes à American Airlines Arena também tivessem sumido. Só estavam ele e Dwyane Wade por ali, ralando, para ver quem conseguia desempatar a série. (Em termos de confiatrix, também, convenhamos que Wade vivia algo inexplicável também. Depois de acertar apenas 7 de 44 chutes de fora durante a temproada regular, ele converteu 4 de 6 pelo Jogo 3 em Miami, chegando a 8 de 11 pelos playoffs em geral. Quem explica isso?)

Como que num estalo, Lowry desembestou a fazer cestas e terminou a partida com 33 pontos, o máximo desde o dia 14 de março — desde então, haviam se passado 23 partidas. Já os 58% de quadra e as cinco bolas de três pontos foram seu recorde desde 18 de março, com 20 jogos.

''Não fiz nada diferente. As pessoas mais próximas vieram até a mim, me procuraram. Mas, na maior parte, o que diziam era para ir para a quadra e seguir jogando. Tenho um cara aqui (apontando para DeRozan, no vestiário), que é provavelmente aquele que mais me apoia, e ele disse isso, para seguir em frente. Ele sempre vai me seguir minha liderança, não importa como, assim como meus companheiros de time. Apenas fui lá e tentei os mesmos arremessos que tentei o ano todo.''

Dessa vez caiu, e, se Lowry conseguiu ignorar as tentações de South Beach, pôde ir para a cama muito mais cedo.

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