Caboclo bate recorde pessoal pela D-League. Aprecie com moderação
Giancarlo Giampietro
É realmente muito tentador. Você assiste a uma partida dessas, vê os números e já quer sair por aí batendo o tambor, passando a mensagem: Bruno Caboclo, Bruno Caboclo e Bruno Caboclo. Nesta segunda-feira, o jovem ala brasileiro voltou a jogar pelo Raptors B pela D-League e marcou um recorde pessoal de 31 pontos em vitória tranquila sobre o Grand Rapids Drive, a filial do Pistons, por 136 a 105.
Independentemente do contexto – nível do oponente, intensidade defensiva, estilo de jogo da liga –, foi uma atuação para se tomar nota, mesmo, com o sorriso armado. Provavelmente sua melhor nesses dois anos de profissional nos Estados Unidos, o que causa um certo frisson na internet basqueteira brasileira. Mas é aí que você tem de tirar o pé e recomendar algo básico. Não tem problema se animar com o progresso do rapaz de 20 anos. Só aprecie com moderação, no entanto:
Antes de falarmos sobre o apanhado diversificado de cestas acima, parece ser mais importante discutir as ressalvas. Não é porque Bruno anotou 31 pontos em 36 minutos em Grand Rapids que, de uma hora para a outra, está pronto para jogar uma Olimpíada. Pelo menos não daqui a pouco, no Rio de Janeiro.
Este foi o ápice do brasileiro com a camisa dos 905s, é verdade, mas que tem de ser avaliado dentro do que vem sendo sua temporada. Vejam só: em suas últimas três partidas pela equipe de Mississauga, ele havia somado exatamente… 31 pontos, amassando o aro, com apenas 10 cestas em 32 tentativas. E o que tiramos disso tudo, entre pontos e altos? A média, claro: o ala jogou outras 34 partidas neste campeonato, com de 14,4 pontos, 6,3 rebotes, 1,1 roubo, 1,6 toco e 1,7 assistência em 33,7 minutos, com 39,8% de aproveitamento nos arremessos, 33,9% nos tiros de três e 73,3% nos lances livres.
Já muda um pouco de figura, não?
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Na hora de pensar sobre Caboclo, não dá para perder de vista de que este é apenas seu segundo ano efetivo como jogador adulto, e olhe lá. Se formos mais rigorosos, é como se fosse o primeiro, na verdade, já que a temporada passada foi muito mais de aclimatação a um país diferente, ao estilo de vida de NBA, a uma realidade totalmente diferente e que tem suas armadilhas. Ele mal viu a quadra, gente. Estamos falando ainda de um projeto, não de uma realidade técnica.
Isso para não falar da pressão. Caboclo não está apenas desenvolvendo suas habilidades sob a batuta dos técnicos do Raptors. Também está em processo de amadurecimento. Hoje ele pode não travar mais na hora de dar uma entrevista, como aconteceu há três anos, para o SporTV, mas ainda é um garoto nada acostumado a grandes partidas. Quando entra em quadra em Toronto, com o ginásio bombando, o placar já está resolvido, e a torcida está pronta para aplaudir qualquer uma de suas ações.
Não sei o quanto é empolgação com o potencial evidente do garoto, ou quanto se subestima seus concorrentes de seleção brasileira e o mundo Fiba em geral. De todo jeito, bom que se diga: quando as 12 seleções olímpicas se reunirem na Barra da Tijuca, serão pouquíssimos os 'amadores' por lá. Até porque a grande maioria dessas equipes vai escalar justamente grandes nomes da NBA, ou de clubes do mais alto nível europeu. Outro nível, ooooooutra história.
Jogar e produzir pela D-League não é pouco. Contra o Grand Rapids, o caçulinha foi marcado em diversas posses de bola pelo veterano Dahntay Jones, um ala que sobreviveu na grande liga americana por mais de 10 temporadas graças a sua tenacidade na defesa. Aos 35 anos, seu físico não é mais o mesmo, mas ainda seria tranquilamente um cara que, se interessado, poderia descer o continente e ajudar algum time venezuelano a ir longe na Liga das Américas, tal como fez Damien Wilkins pelo Guaros de Lara. Caboclo não se importou e fez o que bem entendia. A cada jogo, o ala vai enfrentar atletas com este perfil, ou caras mais jovens que não desistem do sonho de uma promoção. A capacidade atlética da liga menor é de embasbacar, e a sede por um contrato valioso, nem que seja com o Sacramento Kings, implica em uma competitividade traiçoeira.
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Ainda assim, a D-League pode ver a grande maioria de suas partidas descambar para uma pelada, principalmente pelo prevalecimento dos interesses particulares em detrimento do sucesso coletivo de um time. Basta espiar o placar dos jogos em geral para se ter uma ideia (103 a 105…). De modo que a dinâmica dessas partidas não poderia ser mais diferente do que a que a seleção brasileira vai enfrentar no #Rio2016. Se a transição da NBA para a Fiba já pede mais concentração dos veteranos, imagine a da D-League.
Rubén Magnano até poderia chamar o ala para o período de treinos e ver o que dava para tirar dali. O escaldado argentino, porém, já deu a entender, para além das entrelinhas, que essa hipótese tem chance praticamente zero de ser aplicada – para constar, o mesmo raciocínio vale para Lucas Bebê. Difícil discordar dessa lógica, ainda mais para alguém que tem sido tão metódico na formação de seu grupo – com os mais jovens pagando pedágio em um Sul-Americano aqui, outro período de testes ali, antes de serem incluídos em torneios de expressão. Aconteceu com Raulzinho e Rafael Luz. Leo Meindl está passando por isso agora. Lucas Dias, eu ex-companheiro, ao menos já foi para uma Universíade nessa gestão. Caboclo nunca se juntou a time nenhum. (PS: se for para defender a convocação de algum atleta bem mais jovem para o grupo olímpico, estão aí, ao meu ver, as duas possibilidades mais justas. O consistente NBB que Lucas fez pelo Pinheiros vale mais do que a experiência de Bruno neste momento. Mas é pouco provável também que tenha uma chance. Se mantiver sua lógica, Magnano dificilmente convocará alguém de primeira para uma campanha destas.)
Quando selecionou o ala em 2014 na primeira rodada, para surpresa geral, o gerente geral Masai Ujiri se viu obrigado a traçar um plano de longo prazo para desenvolvê-lo. Para a avassaladora maioria dos jogadores em seus contratos de novato, o terceiro ano de NBA já seria de graduação. Eles dificilmente disputam a liga de verão e tal. Já ganham passe livre para conduzir seus treinamentos nas férias do jeito que bem entenderem. Acontece que o ala ex-Barueri e Pinheiros não é um casso corriqueiro desses. Pelo contrário: é um caso especial, com a reputação do prestigiado dirigente envolvida. Eles traçaram um plano de longo prazo, e qualquer que seja a atividade prevista para o verão (setentrional) de 2016, talvez o melhor seja deixar o garoto com eles, mesmo. Em termos de experiência, para reforçar sua confiança, é provável que mais uma liga em Las Vegas seja mais proveitosa do que duas semanas de treino com a seleção.
Enfim, com tudo o que está na mesa, uma Olimpíada não é uma competição para testes e experiência, e aqui voltamos ao jogo desta segunda e ao campeonato de Caboclo em geral. Nesta segunda, sua exibição ofensiva foi uma maravilha, consistentemente atacando o aro. Nesses movimentos, vai lembrar invariavelmente a imagem de Giannis Antetokounmpo, devido ao corpo esticado toda a vida e a uma facilidade impressionante de chegar ao aro. Mal precisa saltar, mal precisa correr. Duas passadas, braço esticado, e pumba, como vemos no vídeo acima. Segue seu quadro de arremessos na noite:
Como fica mais evidente, dá para dizer que os técnicos do Raptors têm trabalhado com Bruno o tipo de ataque que a NBA ''dos números'' pede hoje: ou você chuta de três, ou vai tentar a finalização lá pertinho da tabela. As bolas ''mais eficientes'' segundo o cânone recente. Agora, essa opção também tem a ver com as próprias limitações do brasileiro. Vai demorar ainda que apareça um jogo de média distância para ele – este, aliás, já é um tipo de arte perdida na liga. São raros os jovens que chegam com esse tipo de repertório, como o ala TJ Warren, do Phoenix Suns. Para não deixar dúvida, este é o seu quadro de arremessos de toda a temporada:
Percebem o contraste de cores, certo? O quadro de baixo dá um panorama bem mais honesto sobre o tipo de cestinha que Caboclo é. As diversas manchas vermelhas acima mostram que há muito o que ser feito ainda, e sem pressa. O Raptors 905 não se importa com isso. O que vale aqui é que, no futuro, o brasileiro tenha sido capaz de aprender com seus erros e acertos, assimilar os treinamentos, ganhar cancha e, enfim, contribuir para o time de cima.
Contra o Grand Rapids, Bruno foi quase sempre utilizado numa formação flexível (exceção feita quando a quadra era congestionada pelo imenso Sim Bhullar, que mais parece uma criação de efeitos especiais). O brasileiro era basicamente um homem na linha de frente, em vez de nos apegarmos a definições como ''3'' ou ''4'' – no futuro, para alguém de seu biótipo, poderá marcar praticamente todos os tipos de jogadores.
Para além dos 31 pontos, um ótimo sinal dessa partida foi o fato de que, quando o Raptors B jogou bem, Caboclo foi junto. Isto é: quando a bola girou de mão para mão, com os atletas em constante deslocamento, espaços foram abertos, e o ala soube aproveitá-los com suas infiltrações, em vez de estacionar no perímetro e exagerar na dose em seus arremessos de três pontos. Ele se movimentou com leveza pela quadra e tratou de envolver seus companheiros. Precisamos sublinhar isso: diversos scouts se manifestaram com preocupação ao blog durante a última liga de verão em Las Vegas sobre a ''fome'' do ala em quadra. Para quem havia jogado tão pouco, achava natural que acontecesse. Durante a temporada da D-League, no entanto, isso voltou a se repetir em diversas ocasiões. Aparentemente, o brasileiro se apresentou dessa vez ao Raptors 905 disposto a atacar de outra forma, e deu muito certo. Foi uma atuação extremamente produtiva, buscando a cesta, mas serenamente, sem forçar a barra. Vamos ver se vai conseguir repetir esse padrão, mesmo sem tanta eficiência assim, nas próximas rodadas.
Apelando à prudência, todavia, um fator importante para se ter em mente é que, tanto para o Raptors, hoje um candidato ao título, como para a seleção, o raciocínio é o mesmo, por ora: o jogador não chegaria para ser cestinha. Suas prioridades mais imediatas são a defesa e a capacidade de executar pequenas tarefas.
Um parêntese estatístico, então, para alertar mais uma vez o perigo de se guiar apenas por números: a linha de Caboclo mostra apenas uma assistência e cinco roubos de bola em 36 minutos. Deduzíramos, então, o quê? Que foi um fominha e um terror na defesa, e não teve nada disso. Vários dos passes do brasileiro resultariam em assistência para um companheiro, assim como boa parte dessas bolas recuperadas vieram em passes interceptados por um seus parceiros também, com o roubo sendo computado a seu favor simplesmente por ter feito o domínio.
Em geral, Caboclo ainda se confundiu muito em posicionamento. Quando envolvido em situações de pick and roll no terceiro período, por exemplo, durante breve reação do adversário, recuou, mas não conseguiu dar conta nem de bloquear o baixinho com a bola em mãos, nem em contestar seu oponente do modo desejado. A impressão que passa é a de que Bruno ainda conta muito com sua envergadura para recuperar terreno e fazer a marcação. As ferramentas estão aí para serem usadas, mesmo, e, com braços dessa extensão, é como se estivesse perto da bola sempre. Mas, se bem posicionado, pode se tornar um defensor realmente implacável, intimidador.
Num jogo tão complexo como o basquete, em que o comprometimento de uma peça pode acabar com toda uma engrenagem. Isso ainda vai pedir um pouco de paciência ainda, e, pensando lá na frente, faz bem ver o quanto ele pode render quando joga solto e confiante como nesta segunda-feira. Sua linha de tempo, no momento, só difere daquela que vale tanto para o Toronto como para a seleção: um time destronar o Cavs no Leste, enquanto o outro sonha com o pódio. Para a temporada que vem, em relação ao seu clube, pode ser que mude, dependendo do que fizerem nos playoffs e de como vão se comportar no mercado de agentes livres. Uma hora essas linhas vão coincidir – pelo menos é o que Masai Ujiri espera. Se tudo der certo, Tóquio 2020 já chega.