O intrincado caminho para o desenvolvimento de Caboclo e Bebê
Giancarlo Giampietro
O Toronto Raptors já surrava o Milwaukee Bucks, em casa, quando Lou Williams recebeu a bola no meio da quadra e viu Bruno Caboclo bem posicionado para o passe, já cruzando a linha de três pontos. O passe foi na medida, e o ala partiu direto para a enterrada. A essa altura, princípio de quarto período, o Air Canada Centre já estava agitado. Depois do lance, entrou em polvorosa, para celebrar o calouro que adotaram prontamente como um xodó. Foi uma estreia perfeita, talvez o momento mais especial da temporada, do ponto de vista brasileiro. Era 21 de novembro, ainda muito cedo no campeonato, mas tudo se encaixava como um conto de fadas para um garoto que nem bem havia jogado como profissional no Brasil e já estava lá na NBA querendo mandar seu recado.
Acontece que aquele seria um episódio isolado, quase um espasmo. O ala mal jogaria depois. De acordo com os planos do time, não há nada de errado com isso. Desde o momento em que anunciou a seleção de Caboclo na 20ª posição do Draft, o Toronto Raptors, representado pela figura de seu gerente geral Masai Ujiri, pregou paciência. O jogador seria lançado aos poucos. Beeem aos poucos. Para o pivô Lucas Bebê, mesmo três anos mais velho, o panorama era o mesmo. Tudo muito calculado.
O difícil, porém, é fazer que as revelações brasileiras, que tanto querem jogar, entenderem e abraçar a causa, o projeto: já se circula pelos bastidores da NBA que o clube canadense tem vivido algumas das semanas mais complicados no processo de desenvolvimento dos dois. Múltiplas fontes da liga americana – de outros clubes, frise-se –, passaram ao VinteUm relatos de uma turbulência em Toronto envolvendo Bruno e Lucas.
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Os dirigentes do Raptors, com o gravador ligado, se concentram em fatos positivos – algo mais que natural, considerando que, em termos práticos, qualquer cartola, quando fala de seus jogadores, está se referindo a patrimônio do clube, seja para o uso na quadra ou como bem de valor.
Conversei em Nova York com quatro fontes diferentes ligadas ao time: Ujiri, o chefão; o treinador Jama Mahlalela, quem mais passa tempo em quadra com o brasileiro; o chefe do departamento de scouting internacional Patrick Engelbrecht, o homem que ‘descobriu’ Caboclo; e Kyle Lowry. Eles discorreram sobre o trabalho com os jovens brasileiros. São aqueles que mais os veem em ação no dia a dia de treinos, uma vez que jogos, para valer, são escassos. As declarações, no entanto, ganharam um contexto muito diferente dias depois do All-Star Weekend, a partir da notícia sobre a visita-surpresa dos jogadores aos camarotes do Carnaval do Rio de Janeiro, na Marquês de Sapucaí.
Caboclo e Bebê mal têm jogado pelo time canadense. Depois do furor da estreia, o ala só seria utilizado em mais três jogos, com um total de 16 minutos. Seria na D-League em que ele ganharia mais tempo para botar em prática aquilo que tem treinado diariamente com a comissão técnica. Bebê não foi enviado para a liga de desenvolvimento da NBA, mas também foi pouco acionado pelo técnico Dwane Casey (menos de 24 minutos em seis partidas). De novo: nada ao acaso.
Por tudo o que o blog ouviu, tanto empenho nos treinos e as poucas oportunidades para jogar levaram os atletas a um nível de frustração alarmante, sucedida por atitudes questionáveis fora de quadra. ''Muita exposição, muito cedo'', ''não há como negar que coisas ruins aconteceram'', ''há problemas em Toronto com os dois''… Esses foram alguns dos comentários endereçados. O que se sabe, nos corredores da liga, é de atos indisciplinares, que não precisam ser publicados. São uma mistura de imaturidade e um certo deslumbre com todas as armadilhas que podem cercar a vida de qualquer jogador da liga norte-americana, quanto mais de dois jovens estrangeiros.
A ida ao Rio de Janeiro para o Carnaval não pegou bem. Pessoalmente, ao ver as fotos da Sapucaí, de início não achei crime algum naquilo. Não foram os primeiros, nem serão os últimos atletas da NBA a sair pela noite, e, além do mais, eles estavam em meio a uma semana de folga. Aliás, não custa lembrar que a ATP (Associação dos Tenistas Profissionais) usou o desfile das escolas de samba para promover o Rio Open, levando Rafael Nadal, David Ferrer e Guga Kuerten para a avenida. Antes da estreia dos espanhóis no torneio – Ferrer seria o campeão.
Por outro lado, os brasileiros viajaram um tanto tarde, já perto da data de retorno aos treinos. Além disso, dá para entender perfeitamente a linha crítica a esse passeio, uma vez que, se eles mal jogam pelo time, precisariam aproveitar qualquer dia disponível de treino para tentar melhorar e buscar espaço no time. Não sei se existe certo ou errado aqui. E, de qualquer forma, já há dois problemas nessa divagação: 1) a opinião de um blogueiro não vale de nada comparada com a de quem trabalha com os jogadores diariamente; 2) a escapada veio nesse contexto já tenso.
A primeira passagem de Bruno pela D-League, por exemplo, terminou bem antes do esperado, depois de apenas três jogos, e não foi devido aos seus altos e baixos em quadra – o que era esperado. “É o que acontece com o jogador jovem. Vai ter esses altos e baixos, jogos de um ou três pontos, vai fazer 20 pontos em outro dia. Ele tem de passar por essa curva de aprendizado. Não acho que possamos esperar muito de seus jogos”, diz o gerente geral Ujiri. O problema não foi a quadra. O brasileiro deu trabalho ao Fort Wayne Mad Ants fora dela e teve de ser resgatado às pressas pelo Toronto.
Agora, o ala está de volta ao clube de Indiana, com temperaturas gélidas, literalmente ou não. Tem novamente jogado muito pouco: foram 14 minutos totais nos dias 19 e 20 de fevereiro, com um aproveitamento melhor na segunda, contra o Westchester Knicks, na qual fezoito pontos em 10 minutos, com a equipe conquistando sua única vitória em todas as cinco partidas em que escalou o paulista de Osaco. No dia 22, ele nem mesmo entrou em quadra – por decisão do treinador Conner Henry. Independentemente do que acontece atrás das cortinas, este já está longe de ser um cenário ideal para o progresso do ala como jogador.
Em sua estreia pelo Fort Wayne, detalhada aqui, Caboclo fez um primeiro tempo excepcional, mas depois se atrapalhou bastante na volta do intervalo, cometendo muitas faltas e um turnover crucial em uma derrota para o Iowa Energy. No jogo seguinte, sem remorso algum, o técnico Henry deu apenas cinco minutos para o brasileiro, que não escondeu seu descontentamento. Esse tipo de situação jamais aconteceria num clube que fosse exclusivamente controlado pelo Raptors. Nesse sentido, o modelo conduzido por Miami Heat, Houston Rockets, San Antonio Spurs e Golden State Warriors, entre outros, é visto como o ideal.
“Bruno vai ter momentos em que vai parecer muito bom e outros em que vai parecer muito ruim. Vai ser assim. Ele precisa jogar, ganhar experiência. Podemos fazer os exercícios, os treinos a cada dia, mas precisamos que ele jogue mais. Vamos mandá-lo para a D-League para isso”, diz Jama Mahlalela, o assistente do Raptoras, que também ressalta a importância da próxima liga de verão para o brasileiro, a segunda de sua carreira. “Aí será com o nosso sistema, nossos treinadores e minutos prolongados para ele mostrar o que pode'', explica.
Toronto, todavia, não pode depender apenas de um punhado de jogos em julho para desenvolver seus jovens talentos. Por isso, está sondando seriamente o mercado da liga de desenvolvimento em busca de uma filial de seu uso exclusivo. Desta maneira, teriam mais autonomia para botar em prática o que têm de planejado não só para os brasileiros, como para qualquer prospecto no futuro. Esse é um ponto crucial que um scout já havia destacado ao blog, ao término da liga de verão de Las Vegas no ano passado.
Duas fontes independentes também disseram ao VinteUm que a franquia busca um time no estado de Nova York, bem próximo de sua base. A cidade de Rochester seria uma possibilidade, estando a apenas 140 km de distância. Por que não no Canadá? Para evitar dificuldades com visto de trabalho e outras burocracias que podem ser facilmente resolvidas num ambiente mais estável como o da NBA, mas seriam muito maiores numa competição bem mais volátil como a D-League. Só não é, de forma alguma, um processo simples de se executar. A criação de mais um time depende de uma série de avaliações, técnicas e comerciais, por parte de ambas as ligas, além da viabilização de toda uma estrutura paralela para o Raptors gerir.
A relação entre a franquia canadense e o Fort Wayne Mad Ants é amistosa, profissional, mas não pode ser aprofundada pelo fato de o clube da liga menor ter total autonomia em suas operações – é o único que não desfruta de um relacionamento direto com um time da NBA. Quando o técnico Conner Henry recebe um talento vindo de cima, de qualquer uma das 13 agremiações com as quais têm convênio, não tem a obrigação de usá-lo, independentemente das necessidades ou do currículo do jogador. Além do mais, o Mad Ants também joga hoje para vencer e vencer, sendo o atual campeão, inclusive. Sua prioridade difere muito em relação ao restante de seus concorrentes.
''É uma situação difícil, acaba sendo complicado manter qualquer tipo de continuidade. Mas existe um diálogo, sim, e podemos expressar o que pretendemos quando mandamos nossos calouros e a melhor maneira de acomodar isso”, diz Mahlalela. “Não é uma situação perfeita, mas você trabalha com as condições que tem e parte daí.”
Mesmo com os momentos difíceis nos bastidores, segundo o que VinteUm apurou, o Raptors em nenhum momento envolveu ou ofereceu os brasileiros em negociações na semana passada, antes do encerramento da janela para trocas na NBA, na quinta-feira. Quatro clubes diferentes foram consultados a respeito. Nenhum ouviu sequer um pio de qualquer rumor em torno de Bruno ou Lucas. O consenso é que Ujiri investiu muito – tanto do ponto de vista financeiro, como esportivo – nos dois jogadores e ainda confia no desenvolvimento de seu imenso talento.
É bom lembrar que o contrato de calouros da NBA tem apenas dois anos garantidos – os terceiro e quarto anos são opcionais para as equipes. No caso de arrependimento, os times têm, então, menos compromissos assumidos, menos dinheiro comprometido, e podem facilmente seguir em outra direção. Vide o caso de Fabrício Melo e o Boston Celtics: após um só campeonato, o pivô mineiro foi trocado por Danny Ainge para o Memphis Grizzlies, que o dispensou de imediato, consumindo seu salário final de mais de US$ 1 milhão. Melo ainda tentou assinar com o Dallas Mavericks, mas não passou no corte do training camp. Hoje está afastado do basquete, após ter contrato rescindido com o Paulistano, por conta de graves problemas particulares.
Mas, em Toronto, estamos falando de um conjunto de dirigentes que se encantou há pouco tempo com Caboclo. Gente que sabia que não seria uma transição simples para um adolescente. “Sim, o que se pede é paciência, mesmo. Ele é um garoto muito jovem, tentando se desenvolver. Sabíamos que levaria um tempo para isso acontecer. Mas está tudo bem para nós também. Ele vai ter de passar por esse processo, vai levar alguns anos, mas vamos ser pacientes”, diz Masai Ujiri.
O jovem ala com o qual tiveram contato no período pré-Draft inspira a confiança de que, independentemente dos percalços, o Raptors ainda pode colher bons frutos adiante. “Temos de lembrar: estamos falando de um garoto. Sabemos que é uma peça para o futuro de nosso clube e não para amanhã. Para nós, o que conta é o progresso contínuo, dia após dia”, afirma Engelbrecht. “Ele é um desses caras que se sente em casa no ginásio. É seu ambiente natural, no qual ele fica realmente confortável, quando está treinando. Para nós, esse foi um dos pontos principais para apostar. Pensamos que, não importasse o nível de talento que tivesse, sua dedicação o levaria adiante. Isso nos deu a segurança para realmente considerá-lo naquela escolha.”
Houve momentos, nas primeiras semanas de convívio em Toronto, em que o clube precisou até mesmo pedir para o ala maneirar em suas idas ao ginásio. Houve dias em que estava ultrapassando a casa de quatro horas de treino, usando estagiários para ajudá-los em séries de arremesso etc. Para a comissão técnica, o ideal é trabalhar por menos horas, mas com muita intensidade.
Em termos práticos, o Raptors vem trabalhando em duas frentes com Caboclo. “Estamos tentando deixá-lo mais forte agora. Estamos nos concentrando em deixar sua base mais forte, mesmo. É para isso que este ano vai servir. Além disso, vamos desenvolvendo também algumas habilidades individuais de NBA, um trabalho extenso em cima disso”, diz Ujiri. Bebê também passa pelo mesmo processo, embora com menos ênfase – já está num ponto diferente de aprimoramento.
O que se mais trabalhou até agora foi realmente o aspecto físico, com a supervisão do renomado Alex McKechnie, escocês que é o diretor de ciência esportiva do clube e que trabalhou pelo Lakers de 2003 a 2011. Durante as 'férias', Caboclo e Lucas passaram por um período intenso em um centro de treinamento de Vancouver que tem McKechnie como um dos proprietários. “Foi uma ótima oportunidade para o Alex realmente avaliar o corpo deles, encontrar os pontos fortes e fracos em seus corpos e, a partir daí, elaborar um plano para atacar essas fraquezas”, afirma Engelbrecht.
Agora em Toronto, os brasileiros se dedicam a exercícios diários, específicos antes ou depois dos treinos oficiais comandados por Dwane Casey. É aí que entram Mahlalela e outro assistente, Bill Bayno. Bebê, mais velho e bem mais experiente, vindo de três temporadas na Liga ACB espanhola, o principal campeonato nacional da Europa, estaria mais perto de ser aproveitado. “Esperamos que nessa segunda metade da temporada ele possa ter oportunidades. Não necessariamente ganhando um papel definido no time, mas uns cinco minutos aqui e ali. Em jogos que tenhamos uma vantagem confortável, talvez ele possa entrar no segundo quarto para se testar, para provar um pouco e dar mais motivos para que ele possa continuar treinando forte”, diz Engelbrecht. “Ele tem feito um ótimo trabalho. Esperamos que a comissão técnica se sinta confortável com o nosso time caminhando para o fim da temporada e possa dar a ele alguns minutos. Mas essa é uma decisão dos treinadores. Masai e os técnicos conversam sobre o que querem em termos de desenvolvimento.”
A palavra, então, passa a Mahlalela, um dos técnicos: “Acho que é mais provável, sim, que encontremos minutos primeiro para Lucas do que para o Bruno, mas acho que ele tem de fazer por merecer e, se for chamado, tem de estar pronto para jogar. Ele tem um feeling natural para o jogo, o que nos deixa mais à vontade em colocá-lo em quadra para ver o que pode fazer”. O técnico, porém, relembra: “Ele é mais velho, mais maduro, mas também ainda é um novato na NBA, está tentando encontrar seu caminho e ainda é um trabalho em andamento”.
Em termos de habilidades como atleta, não há dúvida de que há muito potencial para ser explorado pela dupla. Aquela estreia incrível de Caboclo contra o Bucks ainda está na memória, como prova clara e irrefutável disso. Só é necessária a consciência de que aquela euforia passou e o caminho para o sucesso vai passar por semanas e semanas de treino, mesmo, sem muito glamour, sem os holofotes. “Ele vai poder olhar para aquele momento no futuro e perceber o quão especial foi”, diz Mahlalela. “Mas ele tem de continuar trabalhando. Foi um momento único, mas que não vai acontecer o tempo todo.”