Vinte Um

Chegou a hora de a NBA dar uma chance a David Blatt

Giancarlo Giampietro

David Blatt, Euroliga, campeão, 2014, Maccabi

Era um título que faltava no currículo de David Blatt, mas que é agora é só mais um lapso do universo basqueteiro já devidamente sanado.

Não que Blatt estivesse carente de grandes feitos em seu CV. No arquivo já estavam computados dois pelos resultados com a seleção da Rússia. Primeiro, guiou Andrei Kirilenko, Victor Khryapa e infantaria a uma vitória contra a Espanha na final do Eurobasket 2007 em Madri – talvez a maior derrota que a geração dourada roja tenha sofrido. Também ganharam um bronze olímpico há dois anos.

(Daí que alguém pode perguntar o que tem de tão especial nisso, uma vez que estamos falando da Rússia. Mas basta ver o retrospecto do país antes e depois de Blatt para constatar sua influência.)

A vitória contra a turma de Gasol segue inesquecível, claro, mas agora o treinador ganhou um novo favorito triunfo para suas memórias, considerando sua ascendência judaica e seu vínculo com o país.

Depois de formado na universidade de Princeton, sob o comando do renomado Pete Carril, Blatt fez carreira em Israel. Uma vez aposentado como jogador, foi lá também que passou importantes anos como assistente do controverso Pini Gershon, até seguir de vez por caminho próprio em 2004, girando por toda a Europa. Ainda foi campeão na Itália e em clubes da Rússia, até voltar a uma segunda passagem agora plenamente aclamada pelo Maccabi.

Seu futuro, para a próxima temporada, não está claro – os rumores na Europa são fortes de que ele já teria um acordo verbal com o CSKA Moscou, algo que negou de modo veemente. Vai saber. Ettore Messina já disse que vai deixar o clube quando terminar a campanha da liga VTB. Isso é 99% certo, então.

Messina está com o nome inflado, sonhando com uma proposta da NBA. Dessa vez, em vez de consultor de Mike Brown, o italiano quer uma vaga de comandante para valer. O Utah Jazz já foi o primeiro time especulado como um possível interessado. Há vagas para todos os lados – Cleveland, Minnesota, Nova York (esquece), Los Angeles e, possivelmente, Memphis e Milwaukee.

Mas será que, antes do treinador que ele próprio derrotou na semifinal da Euroliga, não seria a hora de Blatt ganhar uma chance?

Embora esteja automaticamente associado a Israel hoje em dia, o cara vem dos Estados Unidos. Nasceu em uma Boston conquistada por Bill Russell no final dos anos 50. Obviamente o impacto cultural em sua transição seria bem menor. Posto isso, oficialmente ele não poderia ser considerado o primeiro europeu a comandar uma equipe da liga norte-americana. Mas tudo bem. Que a formalização fique para outro pioneiro.

Lembrando que o Oklahoma City Thunder já contratou o sérvio Darko Rajakovic para ser o treinador principal de sua filial da D-League, o Tulsa 66ers. Outro sérvio, Igor Koskov, foi o primeiro gringo a fazer parte de uma comissão técnica de primeira divisão da NCAA, como assistente de Quinn Synder em Missouri, assim como foi o primeiro assistente integral de um time da liga profissional, sendo campeão com Larry Brown e o Pistons em 2004 – hoje trabalha para o Cleveland Cavaliers, depois de passar pelo Phoenix Suns.

Aos jornalistas europeus, Blatt não foi tão efusivo ao falar sobre essa possibilidade. Quando contatado pelo USA Today, porém, seu discurso deu uma guinada bastante aguda. “Estou muito interessado. Mas obviamente que alguém precisa te querer”, disse. “Não há dúvida em minha cabeça de que conseguiria fazer o trabalho.”

Nem dá para restar dúvida, mesmo, de que o técnico está mais que preparado. Pensando nisso, seu título de Euroliga não poderia ter vindo em melhor hora, com o terreno da NBA já assentado para que um time siga essa rota.

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E não foi um título qualquer. O Maccabi brecou um Real Madrid que causou sensação na temporada europeia. Neste domingo, ele fez da vida do espanhol Pablo Laso e seus comandados um inferno.

Foi um jogo que serve de lição para muita gente, especialmente aqueles que defendem o arremesso de três pontos como a bola mais importante e indiscutível – tudo baseado em planilhas estatísticas frias, supostamente irrefutáveis, ou em bagunça generalizada, mesmo.

O Real Madrid que atropelou boa parte de sua concorrência durante a temporada prima pela velocidade, leveza e agressividade de seus principais jogadores. Não estão limitados ao contra-ataque, mas rendem bem melhor quando conseguem sair em transição, como acontece com praticamente toda a população mundial, claro.

O Maccabi primeiro fez questão de tirar esse contragolpe. Ainda que tenha capturado 19 rebotes ofensivos, com destaque para os 6 do pilhadaço Alex Tyus e três do armador Ricky Hickman, o time israelense soube restabelecer seu posicionamento defensivo e limitar o jogo em transição do oponente.


Em situações de meia quadra, Blatt armou uma defesa bastante recuada, compacta em torno do garrafão, inibindo as infiltrações dos Sérgios armadores, Rudy Fernández ou Nikola Mirotic. Se fossem para ser batidos, que acontecesse por via dos chutes de longa distância. E o Real mordeu a isca rapidamente.

Os números finais: de 74 arremessos de quadra em 45 minutos de jogo, 34 foram da linha de três pontos (45,9% do total, sendo que, no terceiro período, a divisão chegou a ser de 50% de dois pontos para 50% de três). Um disparate, especialmente quando levamos em conta que a média em todo o torneio foi de 24,7 (dez a menos), para 36,9 de dois.

E também não é porque o Real não tenha grandes chutadores – coletivamente, eles acertaram durante o ano 39,7%. Em particular: Sérgio Rodríguez terminou o campeonato com mira de 50%. Mirotic, 46,1%. Tremmell Darden, 46,4%. Jaycee Carroll, 39,7%. Rudy Fernández e Ioannis Bourousis, com 35,3%. Na decisão, no entanto, o rendimento foi de 32,4%, muito baixo, embora Rodríguez tenha sustentado sua média ao converter cinco de dez tentativas. Quer dizer: se você desconta o Señor Barba, os merengues teriam terminado a final com apenas 6 tiros certos em 24 (25%).

Algumas bolas foram precipitadas. Outras, bem contestadas, no estouro do cronômetro. Não é que o Maccabi simplesmente permitiu que os adversários chutassem tranquilamente de fora. Seus atletas se recuperavam rapidamente para fazer a contestação. Além disso, o Real pecou na hora de criar boas situações de arremesso. O técnico Pablo Laso já havia chamado a atenção de seus atletas de que eles precisavam insistir no jogo interno, passando mais a bola e agredindo, em busca de lances livres – nos primeiros 20 minutos, o time havia cobrado apenas cinco deles; nos demais 25 minutos, foram mais 15, ainda aquém do esperadao. Não aconteceu.

Sérgio Llull foi um dos que mais se atrapalhou nesse sentido. O armador driblou em excesso, tentando chamar jogadas de pick and roll sem sucesso. De modo que várias posses de bola madridistas acabavam pressionadas também pelo relógio da posse de bola. Foram diversas as vezes em que seus atletas arriscaram arremessos de muito longe, bem para trás da linha da NBA.

Llull já não é dos armadores mais criativos com a bola – esse, sim, depende muito do contra-ataque e do jogo de velocidade para produzir em alto nível. Na hora do aperto, o excesso de faltas de Rodríguez se comprovou fatal. O MVP da competição, minado pelas infiltrações de Tyrese Rice, teve de ficar guardado por boa parte do quarto período e da prorrogação.

Acima de tudo, o time espanhol, que havia destroçado o Barcelona, não conseguia se sentir confortável em quadra, sem impor seu ritmo, em que não só os atletas são velozes, mas também suas troca de passes. Terminaram a partida com 15 assistências, um pouco abaixo do que fez na temporada (17,8), mas a fluidez deixava a desejar. A pressão do favoritismo e da derrota na final do ano passado também não podem ser ignorados para tanta trava.

Do outro lado, o Maccabi chegava empolgado, e sempre como franco-atirador. Uma situação inusitada para um clube tão tradicional, mas com orçamento bem inferior hoje em dia quando comparado com seus companheiros de Final Four. Sem alarde, mas confiantes.  Durante as entrevistas dos campeões, dirigentes, técnico e jogadores, um ponto foi praticamente universal: como todos eles passaram a acreditar que algo “especial” poderia acontecer a partir do momento em que venceram o primeiro jogo das quartas de final contra o Olimpia Milano.

Naquele confronto, eles perdiam por 12 pontos com menos de quatro minutos restando no relógio. Forçaram a prorrogação e roubaram o mando de quadra no confronto. E como? Com um desempenho infernal da dupla de americanos Rice e Hickman. Os dois bateram 18 lances livres naquela ocasião, sem desperdiçar nenhum, dando prioridade alta ao jogo interno.

Essa receita foi repetida no segundo tempo contra o Real, de volta a Milão semanas depois. Os dois armadores somaram 17 lances livres, com apenas um erro de Hickman. Juntos, os dois praticamente igualaram a produção de todo o time do Real nesse quesito (19 x 20, upalelê). No total, o Maccabi cobrou 30 lances livres.

Rice foi um pesadelo à parte para Pablo Laso. Entre tantos rapazes de seleção espanhola ao seu dispor, o treinador não conseguiu encontrar resposta alguma para brecar o primeiro passo explosivo, o arranque rumo à cesta do tampinha. Aqui, fez falta o americano naturalizado croata Dontaye Draper, seu melhor defensor no perímetro. Llull, um jogador dinâmico ao seu modo, não conseguiu se manter à frente do oponente, que passou a entrar no garrafão madrilenho quando bem entendia. Ao lado de chutadores como David Blu, Devin Smith ou Guy Pnini, que precisam ser vigiados de perto, ele tinha espaço para se esbaldar.

Por mais que tenha perdido muitas bandejas e chutes em flutuação, quando contestado pelos pivôs próximo à tabela, o simples fato de Rice ter quebrado a defesa acabou gerando as oportunidades de rebotes ofensivos que Tyus adora. Hiperatlético, daqueles que não se cansa de saltar e saltar em sequência, o pivô revelado pela universidade de Flórida completava o estrago (12 pontos, 5/7 nos arremessos).

A defesa e o favoritismo do Real ruíram. Rice e Hickman executaram, enquanto o técnico do Maccabi mostrava o caminho. Como disse um dirigente norte-americano ao soberbo Marc Stein, do ESPN.com: “Eles (o Maccabi) estavam em desvantagem em todas as posições menos na de técnico. Blatt pertence à NBA”.

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O único que talvez não aprove uma chance para o sonho americano de Blatt? Coach K, que bateu-boca com seu (ex-?)compatriota durante o Mundial de 2010. A discussão pública veio por causa daquele que talvez seja o jogo mais polêmico da história do basquete: a decisão olímpica de Munique 1972.

O técnico do Maccabi, então comandando a Rússia, afirmou na ocasião que a União Soviética seria a vencedora legítima do ouro – conquistado num final de jogo bastante contestado pelos Estados Unidos. É uma longa trapalhada, gente.

Aqui, a versão de um lado:

E a do outro. Pois imparcialidade é o nosso esporte:

Krzyzewski ficou uma arara. “Sabe, ele treina a equipe russa, então ele provavelmente vai ter esse ponto de vista, e seus olhos estão mais limpos agora agora porque não há mais lágrimas neles”, afirmou. Eita.

Blatt respondeu: “Acho que o Mike ignorou o fato de que sou tão americano quanto ele. Na América, nos ensinam que a liberdade de expressão e a liberdade de pensar nos permite tentar ver as coisas objetivamente, para formar nossas opiniões e expressá-las”.

Coach K não quis saber: “Ele é um russo”.

Bem, então talvez Blatt possa ser o não só o primeiro europeu, mas também o primeiro traidor da pátria ianque a dirigir um time da NBA. Muito bem.